30.12.10

Egoísmo estelar

Se, recipiente redondo, eu não rodasse
Em volta de mim mesmo sem parar,
Como aguentaria correr atrás
do Sol ardente sem me queimar?


rima 29, A Gaia Ciência, Friedrich Nietzsche








Gilles Deleuze
: (...) Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes e que todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem, eu não o conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem.

Claire Parnet: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.

Gilles Deleuze: Sim, é Osip. Nesta frase, ele diz... É o tipo de frase que me transtorna. (...) Ele diz que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone por arquivos familiares. Ele continua. "Eu repito: a minha memória não é amor, mas hostilidade. Ela trabalha não para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de origem medíocre, a memória é inútil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está feita. Dentre as gerações felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e crônicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o século, há um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos não a falar, mas a balbuciar. Foi só quando demos ouvidos ao barulho crescente do século e fomos embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem". Para mim, isso quer dizer que... Quer dizer de fato que escrever é mostrar a vida. É testemunhar a favor da vida, dos idiotas que estão morrendo. É gaguejar na língua. Fazer literatura apelando para a infância é tornar a Literatura parte de seu caso particular. É fazer literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se gagueja - o que não é fácil, pois não basta ga-gaguejar assim -, se não se vai até esse ponto. Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. (...)


trecho transcrito do vídeo-entrevista O abecedário de Deleuze, 1994
detidos na letra E de enfance (infância)


28.12.10



Há uma quixotesquia em Alÿs que nos desloca de nossos lugares púdicos, como pode? ou melhor ainda por quê? O que parece ser nada é alguma coisa, e, às vezes - isso é muito belo, o paradoxo da práxis - fazer alguma coisa não leva à nada. O absurdo - ficarmos sem chão - já é uma pista do que podemos elaborar a seguir:
criar um novo apoio - re-sustentar
questionar o teto
aprender o vôo
aprender a queda
(...)

*


A arte como espelho da sociedade (blablabla); isso é muito importante, pois é um pêndulo em tempo real, atual, portanto passante. A questão reside em meus olhos que se vêem desincronizados com o movimento desta imagem, tanto quanto minhas mãos que tentam acompanhá-la em mímica.
Como atualizar o movimento real / aparente? Como polir espelho-olhos-mãos?


*

A liberdade é um mito camaleão
que em breve se colore opressão.

A opressão é um fato camaleão
que nunca se colore diamante. 






26.12.10

anexo:


Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina. Tudo lhes é novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto próprio. O mundo é vasto, e no entanto é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas; distinguem-se eles nitidamente, o mundo e o eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios um ao outro, pois o fogo é a alma de toda luz e de luz veste-se todo fogo. Todo ato da alma torna-se, pois, significativo e integrado nessa dualidade: perfeito no sentido e perfeito para os sentidos; integrado, porque a alma repousa em si durante a ação; integrado, porque seu ato desprende-se dela e, tornado si mesmo, encontra um centro próprio e traça a seu redor uma circunferência fechada. "Filosofia é na verdade nostalgia", diz Novalis, "o impulso de sentir-se em casa em toda parte". Eis por que a filosofia, tanto como forma de vida quanto como a determinante da forma e a doadora de conteúdo de criação literária, é sempre um sintoma da cisão entre interior e exterior, um índice da diferença essencial entre eu e mundo, da incongruência entre alma e ação. Eis porque os tempos afortunados não têm filosofia, ou, o que dá no mesmo, todos os homens desse tempo são filósofos, depositários do objetivo utópico de toda a filosofia. Pois qual a tarefa da verdadeira filosofia senão esboçar esse mapa arquetípico?
Lukács, A teoria do romance


Algo se esboça. É dificultoso sincronizar duas coisas que na verdade não são separáveis. Uma aporia constante. Língua bestial que se apóia no puzzle: separaram o inseparável, resta-nos juntá-loE seguindo de mãos dadas até o fim do bosque, encontramos inscrito no solo aquilo que nos perguntávamos no início da caminhada:


E se alguém dissesse, em sonhos, "estou 
dormindo" -- diríamos que "tem toda a razão"?
L. Wittgenstein, Zettel, 396


25.12.10



os dorminhocos / firmamento


O céu é a imagem do caos. O céu é o container da razão. 
Firmamos um pacto de agora em diante: 
esta teoria nos abandonará no mundo, 
onde desviaremos o que existe 
com o que existe.






24.12.10



Talvez o que me interesse não seja tanto a memória, mas o esquecimento; essa espécie ativa de memória negativa. 
Porque algo se transforma perdendo, liberando espaço. Nascer no repouso.


O paradoxo é o que me faz invendável. 
Porque meu interesse no movimento nasce da minha imobilidade. 
Eu quero esquecer algo de que não me lembro.



23.12.10


como é belo este pássaro que nos acompanha.


News from home, 1977, Chantal Akerman



16.12.10



Falo pelas pessoas habituadas a encontrar sabedoria na folha que cai, problemas gigantescos na fumaça que sobe, teorias nas vibrações da luz, pensamento nos mármores, e o mais horrível dos movimentos na imobilidade. Encontro-me no ponto exato em que a ciência toca a loucura e não posso impor barreiras.

trecho de Théorie de la démarche, 1853, Honoré de Balzac



11.12.10

(...) No sonho o pensamento não se distingue do viver e não perde tempo com ele. 
Adere ao viver; adere inteiramente à simplicidade do viver, à flutuação do ser sob os rostos e as imagens do conhecer.

(...) O sonho nunca realiza esse acabado admirável que a percepção atinge durante a vigília e a claridade.


trecho do texto Estudos e fragmentos sobre o sonho
em Variedades, de Paul Valéry

9.12.10


Leitura selvagem, como um RAW linguístico,
mar fonético que une e desune.
Tornar legível a incompreensão para ser compreendido,
não falar no abstrato, mas mostrá-lo,
girar no paradoxo subjetivo entre o que é gota e o que é absorvido -
vejo, mas sinto -
e isso não te exclui do jogo,
a menos que você não queira jogar.
Desobrigação dos olhos, preguiça do nexo comum (preguiçoso),
(lembrete: a preguiça de preguiçosos demanda grande desvio de energia)
e no fim, mas ainda assim, um saldo.
Saldo. Saúdo. Beast. Langage. Eu. Você.


Film Socialisme, Jean-Luc Godard, 2010



7.12.10


algo é dito sobre o conhecido, mas nada sobre o desconhecido.
eis o limite.

resta, portanto, des-cobrir as imagens corriqueiras (pois elas nos informam sobre nosso estado).

Mais uma vez, como um clarão - 
não suprimir o limite: transfigurá-lo.




4.12.10



(...) Vontade de poder: a forma afetiva primitiva*.
* Tà páthe: "acontecimentos, mudanças que ocorrem nas coisas".

(...) a paixão pela diferença.

fragmentos acerca da figura Cólera em O neutro, de Roland Barthes.

*
Editar um vídeo deve ser estruturar sua erosão,
como o desejo de desaparecer, e, ainda assim,
continuar.
Os dorminhocos é um estado não apenas dos homens,
mas de todo o resto.
Desejo o estado bruto do movimento,
.......................................des-aparecimento
........................................trans-formação
Desejo o tempo necessário de compreensão destes estados.