16.5.09

aí vem Pedro Costa: Ne change rien

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Faço música porque gosto muito de ouvir música e porque gosto muito de cantar. Porque quando ouço uma cantora que admiro, tenho logo vontade de fazer a mesma coisa. Jouvet dizia que o ator é o doido que ouve Haïfez tocar na sala Pleyel e que, enquanto o ouve, se imagina perfeitamente no lugar dele. Para esta minha disposição há alguns pontos de apoio, ou melhor, pontos de partida: a ópera, o lied, Marylin Monroe, Blossom Dearie, Kurt Weill e as atrizes-cantoras alemãs, Aretha Franklin, Patti Smith, Blondie, Nico e Mo Tucker.
Gosto muito particularmente da idéia de acorde. Encontrar o acorde, os acordes, acordar-se, nesse antigo sentido de oferecer-se, acordar-se aos outros, e acordar as coisas a nós. Dou-me conta de que a música é a única da artes que pratico que não se sustenta necessariamente sobre a encenação dum antagonismo, ao contrário do teatro ou do cinema que nunca desdenham um combate de morte entre as suas personagens e que exigem constantemente dos seus intérpretes um afrontamento, pequeno ou grande. Na música há o uníssono, a harmonia, e, se possível a síncope (outra forma de acorde, de trégua), parece-me que nela podemos verdadeiramente caminhar lado a lado, de mãos dadas. Nela encontro uma forma de liberdade que, embora nunca deixando de ser um combate, jamais passa pelo confronto. E nela procuro, incessantemente, um abandono. Fazer música, para mim, contém sempre uma maravilhosa promessa de abandono. Talvez como a criança que levada pelo amor, por um olhar, por uma atenção (o ritmo, a melodia, a harmonia) abandona os braços da mãe para caminhar sozinha no vasto mundo, com o espírito livre e o corpo liberto. "Como uma rolha de cortiça num ribeiro", dizia Orson Welles a Jeanne Moreau a propósito de outra coisa. É engraçado, sempre senti que ser atriz, para mim, era um regresso ao tempo do recém-nascido: lavado, vestido, penteado, observado; e o ser atriz de teatro, um regresso ao encantamento das primeiras palavras. Talvez o ser cantora rememore, indefinidamente, a vertigem dos primeiros passos - antes da palavra ou da primeira braçada - já depois da idade da razão.
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Jeanne Balibar, 26 de abril de 2009

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