28.10.10

rompecabezas
Descrever a imagem apenas com palavra, som. 
Rasgar a ausência nos olhos de quem ouve,
para costurar (confrontar) sua imaginação a partir de então,
como o Dissonante da Manon,
neve longínqua em quinhentas peças estranhamente candescentes.

Sentados ao pé do chão,
rosto e imagem se desdobram,
daqui, dali, dacá.

Abrindo os sapos com canivetes,
Consegui não descobrir.

26.10.10

guia dois: rompecabezas

os dorminhocos
Expressão do rosto diante do início sem base. Resta a cor para compor, variação sobre a pintura (possibilidade de desvio pelas mãos), maneira volpesca de reestruturar a matéria. Mas aqui, como no firmamento, há algo de errado, de limitador, de mecânico: fragmento unitário. Tirar as peças que formam as bordas, pelos velhos motivos da incompletude, por um início de desvio.
A face da cabeça-rompida: importância do olhar, mas também das mãos. Flusser e Bergson. Buscar a estruturação visível, para então romper com ela. No reino das necessidades não-formuladas. O cinza irá nesse sentido de ponto de inflexão, a vírgula ótica, o respiro que toma outro rumo, mas ainda incerto.





23.10.10

22.10.10


lembrete, beast language:


A consciência. -- A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado consciente vêm inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que seria necessário, "contrariando o destino", como diz Homero. Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua consciência; ou melhor: sem aquele há muito ela já teria desaparecido! Antes que uma função esteja desenvolvida e madura, constitui um perigo para o organismo: é bom que durante esse tempo ela seja tiranizada! Assim a consciência é tiranizada -- e em boa parte pelo orgulho que se tem dela! Pensam que nela está o âmago do ser humano, o que nele é duradouro, derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! Vêem-na como "unidade do organismo"! -- Essa ridícula superestimação e má-compreensão da consciência tem por corolário a grande vantagem de que assim foi impedido o seu desenvolvimento muito rápido. Por acreditarem já ter a consciência, os homens não se empenharam em adiquiri-la -- e ainda hoje não é diferente! A tarefa de incorporar o saber e torná-lo instintivo é ainda inteiramente nova, apenas começa a despontar para o olho humano, dificilmente perceptível -- uma tarefa vista apenas por aqueles que entenderem que até hoje foram incorporados somente os nossos erros, e que toda a nossa consciência diz respeito a erros!

A Gaia Ciência, aforismo 11, Nietzsche, 1882 / 1887


18.10.10

Um posicionamento que parece muito importante: 
estar sempre disposto a perder algo. 
Não querer agarrar, mas dispersar, desmontar, des-
Risco fundante da simplicidade. 

Não suprimir o limite: transfigurá-lo.
Se toda língua é classificação
e toda classificação é opressão
então é nossa função básica oprimir,
oprimir um nada que sob tal pressão
nos dê diamantes sem valor.


Um quebra-cabeça que cintile
e que nos deixe atentos,
sob firmamento e pacto
de olhos e bocas rebeldes
porque dormem.

Defino o Neutro como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. Pois não defino uma palavra; dou nome a uma coisa: reúno sob um nome, que aqui é Neutro.
Paradigma é o que? É a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido.
(Barthes)

desmanche constante, 
adeus ao futuro,
demanda por nuance,
a nuance demanda
que cada um se espalhe pelos campos, seu campo.


sleeping woman, 1929, Man Ray

14.10.10



lembrete:

















profile and hands, 1932, Man Ray
dead leaf, 1942, Man Ray

A solarização consiste na inversão dos valores tonais de algumas áreas da imagem fotográfica, que pode ser obtido basicamente através da rápida exposição à luz da imagem durante seu processamento.

12.10.10




Gordon Matta-Clark

8.10.10


comunhão, mortalidade, natureza, peregrinação
deus e homens frente à mesma fina camada
rolar-se , banhar-se da terra, perder-se
Jesus dorme na companhia dos visitantes,
sono inteiramente tecido de confiança,
este ato benevolente - conceder o sono a alguém -
está por todos os cantos
quando comicamente se levantam para em seguida sentar,
quando conversam ao pé das árvores,
e fala-se de sonhos absurdos
e envolve-se de natureza em manto e coroa,
enquanto se dorme improdutivamente no intervalo da jornada das jornadas.
riso constante ao reparar no absurdo do mortal que pára pra descansar no caminho ao encontro de deus.

estou sempre dormindo; preciso de tempo para acordar, para entender.


El cant dels ocells, de Albert Serra, 2008

2.10.10

guia um, os dorminhocos

firmamento
atentar ao cinza = ponto de inversão
instrumentos de cordas como tendões inflamados? voz? fôlego?
estado de dispersão, algo a desfazer, algo a perder 
ciência da liberdade






*





(...) No caso de Berkeley, creio ver duas imagens diferentes, e aquela que mais me impressiona não é a que se acha completamente indicada no próprio Berkeley. Parece-me que Berkeley percebe a matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus. Ela permanece transparente enquanto os filósofos não se ocupam dela, e então Deus se mostra através dela. Mas quando os metafísicos a tocam, ou mesmo o senso comum enquanto metafísico, imediatamente a película perde o brilho e se engrossa, torna-se opaca e forma uma tela, pois palavras tais que Substância, Força, Extensão abstrata, etc., aderem a ela, depositam-se como uma camada de poeira, e nos impedem de perceber Deus por transparência. A imagem é ligeiramente indicada pelo próprio Berkeley, embora ele tenha dito "que levantamos a poeira e lamentamo-nos depois de não mais enxergar". (...) trata-se de uma imagem simples que é preciso ter diante dos olhos, pois, se ela não é a intuição geradora da doutrina, deriva imediatamente desta intuição e se lhe aproxima mais do que qualquer das teses tomadas à parte, mesmo mais do que a combinação delas.

fragmento da conferência A intuição filosófica
Henri Bergson, 10 de abril de 1911 
 
*
Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. No entanto, a imaginação tem dois aspectos: se de um lado, permite abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstruir as duas dimensões abstraídas na imagem.

fragmento do capítulo A imagem
em Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser

*
Caro Confrade

Fiquei extremamente desapontado quando soube que não viríeis provavelmente à Europa e meu desgosto teria sido bem mais vivo se não tivesse sabido que é a melhora de vossa saúde que vos impõe renunciar a esta viagem. Desejo que vos restabeleçais pronta e completamente da fadiga de que falastes, e que se explica muito bem quando se pensa na soma de trabalho e reflexão que deve ter custado vosso último trabalho, The Varieties of Religious Experience.

As dificuldades que me assinalastes em certas partes de Matéria e memória são bem reais, e estou longe de tê-las completamente superado. Creio entretanto que, entre estas dificuldades, há as que dizem simplesmente a hábitos inveterados de nosso espírito, hábitos que possuem uma origem inteiramente prática e dos quais devemos nos livrar na especulação. Tal é, por exemplo, a dificuldade de admitir lembranças presentes e inconscientes. Se assimilamos as lembranças a coisas, é claro que não há para elas meio-termo entre presença e ausência: ou são realmente presentes em nosso espírito e, neste sentido, conscientes, ou, se são inconscientes, são ausentes de nosso espírito, e não se deve contá-las entre as realidades psicológicas atuais.

Mas, no mundo das realidades psicológicas, não creio que haja lugar para colocar a alternativa to be or not to be (ser ou não ser) com semelhante rigor. Quanto mais tento apreender-me a mim mesmo pela consciência, tanto mais me apercebo como a totalização ou o Inbegriff (epítome: resumo) de meu passado, este passado estando contraído em vista da ação. "A unidade do eu" de que falam os filósofos me parece como a unidade de uma ponta ou de um cume, nos quais me concentro a mim mesmo por um esforço de atenção, esforço que se prolonga durante a vida inteira e que, ao que parece, é a própria essência da vida. Mas, para passar desta ponta de consciência ou deste cume para a base, isto é, para um estado em que todas as lembranças de todos os momentos do passado estariam espalhadas e distintas, sinto que teria de passar do estado normal de concentração a um estado de dispersão como o de certos sonhos; não haveria, pois, nada de positivo a fazer, mas simplesmente algo a desfazer, nada a ganhar, nada a acrescentar, mas antes algo a perder; é nesse sentido que todas as minhas lembranças lá estão quando não as percebo, e que não se produz nada de realmente novo quando elas reaparecem à consciência.

O resumo que tivestes a bondade de me enviar, relativo ao curso que ministrais neste momento, me interessou profundamente. Contém tantos aspectos novos e originais que não chego ainda a abarcar o conjunto de maneira suficiente, mas uma idéia principal se destaca para mim desde agora: é a necessidade de transcender os conceitos, a lógica simples, enfim, os procedimentos de uma filosofia demasiado sistemática que postula a unidade do todo. É um caminho análogo que trilho, e estou convencido de que, se uma filosofia realmente positiva (isto é, suscetível de progresso indefinido) é possível, ela só pode ser encontrada nesta direção.

Carta de Henri Bergson a William James, de 25 de março de 1903

*
Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia. Tempo diferente do linear (a escrita), o qual estabelece relações causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo, no circular (a imagem), o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis.

fragmento do capítulo A imagem
em Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser