31.5.09

IV. Apêndice americano

"O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma coisa. A diferença entre a série Chrysler e a série General Motors é no fundo uma distinção ilusória, como já sabe toda criança interessada em modelos de automóveis. As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha. O mesmo se passa com as produções de Warner Brothers e da Metro Goldwyn Mayer. Até mesmo as diferenças entre os modelos mais caros e mais baratos da mesma firma se reduzem cada vez mais: nos automóveis, elas se reduzem ao número de cilindros, capacidade, novidade dos gadgets, nos filmes ao número de estrelas, à exuberância da técnica, do trabalho e do equipamento, e ao emprego de fórmulas psicológicas mais recentes. O critério unitário de valor consiste na dosagem da conspicuous production, do investimento ostensivo. Os valores orçamentários da indústria cultural nada têm a ver com os valores objetivos, com o sentido dos produtos. Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão visa uma síntese do rádio e do cinema, que é retardada enquanto os interessados não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã ─ numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total. A harmonização da palavra, da imagem e da música logra um êxito ainda mais perfeito do que no Tristão, porque os elementos sensíveis ─ que registram sem protestos, todos eles, a superfície da realidade social ─ são em princípio produzidos pelo mesmo processo técnico e exprimem sua unidade como seu verdadeiro conteúdo. Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção, desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o cinema) até o último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido. Gravar sua onipotência no coração dos esbulhados que se tornaram candidatos a jobs como a onipotência de seu senhor, eis aí o que constitui o sentido de todos os filmes, não importa o plot escolhido em cada caso pela direção de produção. "

Theodor W. Adorno após sessão de Iron Man (2008) no cinematógrafo, em Dialética do esclarecimento (1947).

29.5.09

III. Alma tailandesa


essa coisa espaço tempo
fôrma centrípeta
passa passa passapasssa
vem vem vem vemvem
aquele silêncio perguntador
daquilo que recheia o Entre



essa inércia desproporcionada por uma luta selvagem:
vamos e não vamos: matérianãomatéria: enigma circular
um círculo limpo, do tamanho de um copo.




ao ver Syndromes and a century, de Apichatpong Weerasethakul (2006)
.r

16.5.09

aí vem Pedro Costa: Ne change rien

"
Faço música porque gosto muito de ouvir música e porque gosto muito de cantar. Porque quando ouço uma cantora que admiro, tenho logo vontade de fazer a mesma coisa. Jouvet dizia que o ator é o doido que ouve Haïfez tocar na sala Pleyel e que, enquanto o ouve, se imagina perfeitamente no lugar dele. Para esta minha disposição há alguns pontos de apoio, ou melhor, pontos de partida: a ópera, o lied, Marylin Monroe, Blossom Dearie, Kurt Weill e as atrizes-cantoras alemãs, Aretha Franklin, Patti Smith, Blondie, Nico e Mo Tucker.
Gosto muito particularmente da idéia de acorde. Encontrar o acorde, os acordes, acordar-se, nesse antigo sentido de oferecer-se, acordar-se aos outros, e acordar as coisas a nós. Dou-me conta de que a música é a única da artes que pratico que não se sustenta necessariamente sobre a encenação dum antagonismo, ao contrário do teatro ou do cinema que nunca desdenham um combate de morte entre as suas personagens e que exigem constantemente dos seus intérpretes um afrontamento, pequeno ou grande. Na música há o uníssono, a harmonia, e, se possível a síncope (outra forma de acorde, de trégua), parece-me que nela podemos verdadeiramente caminhar lado a lado, de mãos dadas. Nela encontro uma forma de liberdade que, embora nunca deixando de ser um combate, jamais passa pelo confronto. E nela procuro, incessantemente, um abandono. Fazer música, para mim, contém sempre uma maravilhosa promessa de abandono. Talvez como a criança que levada pelo amor, por um olhar, por uma atenção (o ritmo, a melodia, a harmonia) abandona os braços da mãe para caminhar sozinha no vasto mundo, com o espírito livre e o corpo liberto. "Como uma rolha de cortiça num ribeiro", dizia Orson Welles a Jeanne Moreau a propósito de outra coisa. É engraçado, sempre senti que ser atriz, para mim, era um regresso ao tempo do recém-nascido: lavado, vestido, penteado, observado; e o ser atriz de teatro, um regresso ao encantamento das primeiras palavras. Talvez o ser cantora rememore, indefinidamente, a vertigem dos primeiros passos - antes da palavra ou da primeira braçada - já depois da idade da razão.
"

Jeanne Balibar, 26 de abril de 2009

15.5.09

Let it bleed

Estava avisado. Olhava pra estrada. Não quis capacete. Pedregulhos e ar fresco. Útero sônico. Tudo bem. As marchas são no pé. Aquela calmaria de sempre. Vamos lá. Que vento. Olho seco ardendo que nem piscina. Ins-. Borrões de árvore. Todo resto preso girando. Como um laço. Instá-. Pedras rolando. Estava avisado. Frente alta. Pneu voador. Que nem piscina. Dor. -tável. Solo. Inércia de sempre. Vasoura humana. Hmm, sangue. Como pincelada. Pedras rolando. Que bonito. Solo. Estou avisado. Atrito cortando. Costas novas. Hm. Vermelh-. Parede natural. Tronco com tronco. Cabeça no tronco. Mais um milí-milime-milési-mi-. aiaia- mbulância. -visei você.
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