25.12.09

"To make God laugh, tell him your plans."

12.12.09

VIII. Os rebatedores


lembrete²:
inúmeras estrelas silenciosas.
. ecoa. conosco.
luz de aço.
imã de conversas infinitas.

o universo só se vê aproximando a cara,
coragem de deixar de-ver tudo ao mesmo tempo,
destotalizando a verdade, permitindo que ela
minta
inutilidade
pulsante.

10.12.09

VII. Os rebatedores


O tableaux rebelde

O reflexo no espelho em cima da mesa onde figuras prototípicas conversam talvez seja o ponto de torque em que se baseie Imitation of life. Escondido como um Wally em meio ao tableaux intrigante que compõe a imagem, o caráter autônomo desse reflexo injustificado pela diegese, ao não necessitar de corpo presente para existir (a princípio achamos que é o reflexo da garota ruiva, mas logo percebemos que não o é, havendo confusão de direções), cria um efeito de estranhamento, sutil vertigem, que nos leva a considerar se aquele não seria o nosso próprio reflexo, do espectador detentor do ponto de vista.

Esta tele-visão, olhar à distância, nos desperta para o tubo catódico que veicula tais imagens, as imagens do videoclipe em sua constituição e construção. Para sublinhar tal olhar distanciado vemos através de um zoom que analisa a superfície da imagem denotando, por sua repetição, a tentativa de compreensão do que é visto. A repetição de instantes já "vistos", ou melhor dizendo, já "vividos" nas periferias da imagem instaura de vez o caráter reflexivo de mostração e demonstração de um pensamento em fluxo corroborado pela música. Este efeito produzido explicitamente na edição, portanto sem a espontaneidade do instante, permite que os acontecimentos encenados não se resumam a meros fatos, a meras narrativas, pois o zoom "pinça" potenciais plots que nunca se realizarão para, de fato, apreciá-los criticamente. Nesse ensaísmo a superfície se torna tecido infinito à costura do pensamento.

A obra possui, portanto, uma "moldura" temporal na qual não é permitido avançar linearmente, mas apenas penetrar, cada vez mais, na superfície, no significado da imagem e do som (a música, arte do tempo, é potencializada pela repetição visual que permite determinadas estrofes se realocarem sobre novos contrapontos imagéticos), como se quisesse nos engolir no turbilhão do instante adiado. Porém, não se trata da descontinuidade "progressiva" do espaço-tempo comum aos videoclipes, mas sim do provocante adiamento do contiunuum que o tableaux (todos juntos a uma passada do olhar) e a música (harmônica e contínua) sugerem existir. Percebemos então a rebeldia formal: quando temos o tableaux vivant, assimétrico, nos remetendo à composição barroca, o zoom-pinça-analítica rompe com a “desorganização” nos aproximando de uma “organização” pictórica pontual e "harmônica", individualizante, devedores aos enquadramentos clássicos e, porque não, hollywoodianos.

Nesse sentido, há a crítica subterrânea da totalização e banalização desse código dito clássico. Se fizermos uma comparação da repetição dos instantes do videoclipe através da edição com a montagem paralela de Griffith, podemos intuir uma busca pela Verdade tipicamente ocidental, na qual a própria "decupagem" dos "planos" (já questionável na medida em que o videoclipe trabalha em “zonas”) busca ver "tudo" da "melhor" maneira, de modo a esgotar seu significado, enterrando todas as conclusões formuladas por um espectador ativo. Trabalhando ironicamente esse esgotamento em direção à Verdade absoluta, o vídeo implode e explode a cada verso musical tal totalização: é impossível abarcar o mundo, ainda que repetindo incansavelmente meros 20 segundos de captação. A potência estética de Imitation of life vem dessa articulação referencial que passa da decupagem clássica e totalizante, ao american way of life, que da mesma maneira lapida a sociedade com limites bem delineados: o homem negro não deve tocar a mulher branca.


Podemos afirmar a partir dessa intuição um tratamento estético-político antiespetacular, no qual o ilusionismo das tramas e do discurso é completamente negado. A opacidade discursiva estaria ligada ainda ao desejo da Verdade - perseguida a todo instante pelo olhar pixelante -, mas no sentido de que esta, inefável, estaria sendo perdida e emulada por códigos sociais arcaicos ditados por uma indústria de costumes, de refrões musicais repetidos ao infinito por famílias patéticas.
Os integrantes do REM têm suas presenças de astros minimizadas ao se tornarem meras "personagens", tendo o mesmo valor das restantes, ao mesmo tempo em que, se incluindo nas imagens, denotam a autocrítica dirigida à representação midiática. Há sentido em chamar estes tipos de "personagens", pois há tramas potenciais e a individualização através de características sociais bastante marcadas pelo cinema e imagens figurativas. A maioria dessas personagens canta a música como se a dublassem, causando a sensação de contradição entre a figura de quem enuncia a crítica e a figura de quem representa o foco de tais críticas. Assim a obra planta nos corpos em ação uma espécie de dialética de representação, opaca e transparente, conscientes e inconscientes de seu estado. Nesse sentido a alienação tematizada pela música e pela imagem encontra sua medida justa ao ser formalizada dessa maneira, na qual as próprias personagens enunciam autocríticas sem perceberem. E é nesse paroxismo que o zoom-ciclo vicioso nos surpreende, quando reparamos naquele pequeno detalhe difuso, naquilo que poderíamos chamar de atração eisensteiniana: o espelho refletindo a imagem autônoma. Não seria este o nosso rosto refletido que só saberia repetir o refrão-título? Nós, personagem alienada e participante?

Uma televisão rebelde e abissal é o que Imitation of life nos explode, sutilmente, na cara.


Videoclipe Imitation of life, da banda REM, dirigido por Garth Jennings, 2001, EUA.

8.12.09

VI. Os rebatedores

http://www.youtube.com/watch?v=-bnQYmmmyOM

Tango

Zbig Rybcynski
1980

Bom saber que sempre e em todo o lugar existem aqueles

19.11.09

V. Os rebatedores


Os tecidos internos eram mais reservados do que todo o restante que se estendia em ampla pele luminosa. No Dentro havia órgãos discretos e pontuais, oxigenados e emaranhados por células que se estendiam também como as partes de Fora, mas agora em um rio de Explosão, combustível de Impressões Atômicas.

15.11.09

IV. Os rebatedores

Escuridão, negar-se a rebater.

Todos mais tranquilos, se abrindo a conversar, candescentes. Os faróis dos carros não são infinitos, então Decoram as ruas em suas precipitações. Negativo do agora. Os tempos simultâneos se sobrepondo no caos da ausência da imagem única, vem à tona a imagem dupla dos Tempos: este livro no silêncio e na nova cadência é o Livro de todos os tempos; esta coxa à luz de velas na nova candela é a Coxa de todas as coxas.

Intuição bastante simplezinha: No escuro os míopes se vingam.

7.11.09

III. Os rebatedores

Tinteiros infalíveis absorvidos pelas telas que se eximem do que elas próprias dirão a seguir.
Significantes dos Tempos.
Improvável Ordem de letras autônomas, espaçadas entre si:
quando se tocam, notam grave erro de Impressão,
quando se separam, perguntam se duplo é o espaçamento,
sem antes perguntarem o que seria esse Espaço em Times.

6.11.09

II. Os rebatedores

Existiam também aqueles que se desmanchavam com o tempo,
tacando sua Passagem por todos os lugares,
com um medo tremendo da velhice.
Podiam falar de Dali de certa maneira,
e do filme cachoeira em sua melhor panorâmica-tóxica,
com um medo tremendo de também falarem Hans Donner.

4.11.09

I. Os rebatedores

... emergem os preguiçosos que caminham sempre tão pouco,
rebatidos para o lugar mais sem dificuldades
em correspondência das Inversões,

enquanto outros imergem
para outro Lugar,

espectro social
extra óptico
...

2.11.09

Sonia Silk nos lembra o my week beats your year e o pavor da velhice. Pavor.
Já passou o tempo em que o tempo não contava.


em
Copacabana mon amour
1970

29.10.09

Ao três de novembro de dois mil e nove






















- Ferreira Gullar
em
Vanguarda e subdesenvolvimento - ensaios sobre a arte
Parte II
1969













(...) O que meus olhos viram foi simultâneo: o que transcreverei, sucessivo, porque a linguagem o é. (...)

Jorge Luis Borges
lembrando
O aleph

24.10.09

(...) Esta etapa da arte política, no Brasil, colocou alguns problemas novos e, de nôvo, alguns problemas velhos. Dêstes, o mais importante foi a volta à radicalização cepeciana, à subestimação dos problemas estéticos e culturais em função da denúncia e da propaganda política, que se verificou não apenas em grupos teatrais universitários mas também em grupos profissionais. O outro problema surgido foi o abandono do sentido didático (brechtiano) do teatro político em favor de uma posição irracionalista, que libera o dinamismo das formas cênicas e às vezes atinge o nível da pura e simples agressão ao público. Esta tendência, como a anterior, decorre de uma visão política da situação brasileira, cujo fundo é o revolucionarismo de classe média. Tais espetáculos são como rituais mágicos em que, por exorcismos, se pretende destruir o inimigo transformado em fantasma ou espírito-do-mal. O êxito dêsses espetáculos, em que se mistura a frustração política à frustração existencial, decorre precisamente da atmosfera mágica exasperada que se cria, e do fato de que, como a realidade exterior é reduzida a mitos e fantasmas, o ritual se cumpre sem deixar restos e o espectador se "realiza"... Esta tendência, importada de Paris e estrumada pela situação política opressiva, é um sinal de um possível retôrno de certos artistas ao caminho da arte-pela-arte. Não é por acaso que os defensores dessa tendência adotaram terminologia idêntica à dos concretistas e desenvolveram a teoria de que o fundamental, no teatro, não é o texto mas o espaço cênico. Noutras palavras - e simplificando - não é o "conteúdo" mas a "forma".
Dentro dêsse mesmo processo de afastamento dos problemas concretos da sociedade se situa o súbito interêsse (já agora esmaecido) de certos círculos intelectuais pela tese da "sociedade unidimensional" de Herbert Marcuse, que oferece argumentos aos que, contrários ao status quo, não compreendem que a transformação qualitativa da sociedade pode exigir longos anos de trabalho e luta obscura. Oscilando entre a ação extremada e o desencanto, essas pessoas são fàcilmente prêsas de teorias como a de Marcuse que, fechando as possibilidades reais de transformação, justificam o abandono da luta ou a exasperação suicida.
Mas essas "vanguardas" trazem em si, embora equivocadamente, a questão do nôvo, e essa é uma questão essencial para os povos subdesenvolvidos e para os artistas dêsses povos. A necessidade de transformação é uma exigência radical para quem vive numa sociedade dominada pela miséria e quando se sabe que essa miséria é produto de estruturas arcaicas. A grosso modo, somos o passado dos países desenvolvidos e êles são o "espelho do nosso futuro". Sua ciência, sua técnica, suas máquinas e mesmo seus hábitos, aparecem-nos como a demonstração objetiva de nosso atraso e de sua superioridade. Por mais que os acusemos e vejamos nessa superioridade o sinal de uma injustiça, não nos iludimos quanto ao fato de que não podemos permanecer como estamos, e estamos "condenados à civilização". Não podemos iludir-nos tampouco tomando as aparências da civilização como civilização, as aparências do desenvolvimento como desenvolvimento, as aparências da cultura como cultura. No entanto somos prêsas fáceis de tais ilusões. Mas por causas complexas. Temos necessidade do nôvo e o nôvo "está feito". O velho é a dominação, sôbre nós, do passado e também do presente, porque o nosso presente é dominado por aquêles mesmos que nos trazem o nôvo. Precisamos da indústria e do know-how, que êles têm, mas com essa indústria e êsse know-how, de que necessitamos para nos libertar, vem a dominação. Assim, o nôvo é, para nós, contraditòriamente, a liberdade e a submissão. Mas isso porque o imperialismo é, ao mesmo tempo, o nôvo e o velho. O nôvo é a ciência, a técnica, as invenções, que são propriedades da humanidade como um todo, mas ainda estão em grande parte nas mãos do imperialismo, que é o velho. Por isso mesmo é que a luta pelo nôvo, no mundo subdesenvolvido, é uma luta antiimperialista. E isso é tanto verdade no campo da economia, como no da arte. A verdadeira vanguarda artística, num país subdesenvolvido, é aquela que, buscando o nôvo, busca a libertação do homem, a partir de sua situação concreta, internacional e nacional. (...)

- Ferreira Gullar
em
Vanguarda e subdesenvolvimento - ensaios sobre a arte

1969

20.10.09


lembrete estético: nunca baixar a cabeça.
nem para a memória
nem para a experiência
nem para o que ainda não existe

.r

10.10.09

lembrete climático.
A passagem é algo realmente fascinante. O poder dos múltiplos, multidão, a coragem do não-lastro e o medo que decorre disso. É fascinante ver as figuras morrerem e daí tirarem sua vitalidade: não há como ser triste, não há como ser feliz, só há e há. A. Talvez. Flanar no conceito, tic tac, dando voltas completas em círculos intermináveis. Olhar também a Akerman com cuidado.

Talvez preto e branco. Sim, talvez preto e branco para poder sumir com tudo na sombra sem precisar justificar as cores morrendo. Luz e não-luz, isso deve bastar. Sim, preto e branco é uma possibilidade.

Ela diz em algum momento que posando sente como se estivesse dormindo. De onde vem o sono? Ele está em quem? Nos escultores? Sim, o sono é luz e não-luz, as cores são outra coisa.

Primeira metade incrível, os cafés explodindo em fábulas.

.r

4.10.09


Lembrete visual: Ofélia me toca. Por quê?
: Pinturas do real. Como?

.r

10.9.09

Three Transitions, 1973, Peter Campus




Erupções do Eu, dizimações do Você. Remendos eternamente provisórios.

.r

7.9.09

Still life, de Jia Zhang Ke, 2006



Campoecontracampo
. Sem pausas para distingüir paisagens e rostos. De sopetão sutil, confusão hipermoderna, gigantismo atômico onde se apertam dezenas de corpos e copos ou ainda milhares de cotovelos vazios de presenças passadas. Aglomeração prescrevida e planejada.





..............

Resta girar por aí sem compreender muito bem esse mundo cifrado em ovnis.
Campoecontracampo decolam de continentes de carne e pedra. Voierismo vingado através da personag... pela persona. Acendam as luzes de todas as pontes que a desorientação vai passar. Paleontólogos pincelam uma tela pintada por pintores que carregam suas carcaças 156 metros fio acima.

Campoecontracampo do equilíbrio: super- e sub-, acima e abaixo da linha da saudade de não sei o quê.
.r

15.8.09

A estética da fome


Um grupo discreto andava, um bloco deslizante de mãos em bolsos e pescoços encurtados. Talvez andassem com certeza demais pra se dizer que não tinham rumo ou bandeira, ainda que isso não importe. Eles se olhavam olhando para frente e para trás, para os lados, para o alto, mas não se olhavam e se viam muito bem, um degelo.

Um deles falava com força em ponto de fusão, prestes a romper com a real realidade e com aquilo que eles vibravam no instante descrito. Como se mergulhasse em um espelho líquido "vamos mergulhar" e por um breve silêncio houve a impressão de "vamos orgulhar", mas ao dobrar a calçada bruscamente rumo ao cinema de calçada - não era mais de rua, pois ali se vendia muito caro apenas àqueles que se queriam como compradores e ainda mais como pagadores - as coisas se esclareceram brandamente sem precisar se perguntar nada. O soquinho no estômago se auto-explicava. Cartaz de improvável sucesso - ao menos enquanto pagadores, pois sabia-se que as sinopses eram meras emersões oceânicas à calçada.

Talvez devessem banir as descrições, realmente, como dizia Glauber em entrevista centrífuga. É pra ver e ouvir, não dá pra contar. Então o que restará depois será apenas o movimento de voltar sem rumo às calçadas, mas com algo imergido no peito como uma tatuagem de marinheiro, um upload. Então uma resenha é de fato um download bastante duvidoso, vagaroso e que no fim não se pode instalar. Mas quem se importa com a utilidade de algo que não prescinde utilidade não faz movimentos bruscos rumo ao cinema ou à algo tão... sem rumo... sem sentido.

Aquele querido mês de agosto é um filme de fronteira. Humana, de alcance, estética, e de língua para os brasileiros. Conta-se uma histórinha que não importa, uma fábula apodrecendo em outros filmes e cinemas, que já foi vista de tantas maneiras em análise combinatória, que se chegou ao ponto de que ficção é constatação pública. Loteria garantida. Usando dessa impossibilidade de contar algo novo nos moldes antigos, o filme mergulha na pré-produção, assumindo-a como pesquisa e processo. Mas não se trata apenas - apenas- de outra metalinguagem deslumbrada com o reflexo, mas da tentativa de encontrar um mapa interior e anterior ao filme em si. E nesse movimento encontramos o que conhecemos (ou não) como - reparando nos itálicos aspáticos- documentário, encenação, registro pesquisativo, road movie, filme de arte, drama, dramalhão artístico, música brega, enfim, em processo.

Portanto, seguimos em direção a filmes infinitos, que não possuem o dom do The end, Fim ou Ende. Aí percebe-se que tudo que tem um fim planejado já possui uma certa contradição ou ironia negativa, pois tendemos menos ao cronômetro do que à eternidade. Não é saudável os namoros de verão terem consciência do inverno, e isso é sintetizado neste filme no momento em que Tânia/Sónia Bandeira chora e ri na despedida do primo amante. É o fim: mas é agosto, é o sol, é a lua, é o ciclo, é o primo, é o amor. Ao mesmo tempo em que essa risada ambígua se apóia na linha divisória do mascaramento da encenação e do instante em que a garota se despe do ridículo latente à toda ficção e jogo. Não que Miguel Gomes, o diretor, tenha planejado esta quebra e posto tudo isso na montagem, mas seu mérito é menos falar e mais ouvir, abrir a estrutura do Cinema - com letra maiúscula, assim como Eduardo Coutinho, Wim Wenders ou Cassavetes, o fizeram cada um à sua maneira e momento - para que se contamine com seu próprio veneno, antecipando a preocupação do feiticeiro contra o próprio feitiço, mas sem evitá-lo, desmascarando-se, como se o que restasse no cinema de hoje fosse a autofagia.

Mas a fome é metafórica - me perdoem pela obviedade -, pois além de não ser um alimento real, o estômago está cheio. Ele pede alimento novo e fresco. A saturação da ficção acadêmica é demonstrada sem infantilidade no filme através do contraste e do limite entre a pesquisa e o que deveras entra para a parte ficcional, ou "o filme de verdade" como se espera ouvir por aí. É bastante curiosa a reação da platéia ao longo do filme, quando documentário e quando ficção esperta. É praticamente uma mudança de lados, de fazer e desfazer amigos, de brigar e trepar com a platéia através do aparato, do gênero e do ritmo. "É muito legal quando o filme começa de verdade", poderia dizer um desatento à crise subterrânea. Mas o importante é que essa volta ao filme "fácil" não é concessão, mas discussão originária desta tensão. Olhe a sobreposição de imagens, quando finalmente se encontram as personagens do filme, através do olhar do binóculo e de uma viagem quase metafísica entre o momento do "eu farei um filme" e "vocês fazem um filme". É a negação da necessidade de fronteiras, de desmistificar o cinema dizendo "não, cinema, você não é especial e deve ser quanto menos especializado, você já não apetece nossos olhos cansados". Como o amor de verão desfeito de Tânia, Aquele querido mês de agosto se despede da Amarra cinematográfica para depois reencontrá-la novamente, esperando dessa vez que esta esteja casada e com filhinhas-amarras lindas.

Pois então como que cuspidos de volta às ruas, o discreto grupo nadava em um espelho líquido, percebendo que podiam novamente se entorpecer. Afogaram-se lembrando dos langoliers de Fenda no tempo, criaturas em forma de almôndegas carnívoras que comiam o espaço-tempo, podendo comer as fronteiras, agora não mais linhas de cal, mas linhas imaginárias.






Aquele querido mês de agosto estreou na sexta, 14 de agosto em São Paulo, apenas na sala 3 do Reserva Cultural, sala de cinema que cospe verniz em homenagem às piscinas escondidas e aos náufragos pagantes.


.r

8.8.09

10 10110111 101 1


amor kernel, illegal share,
paroxismo,
a arte é um upload.

29.7.09

XIII. Pull-mão

(...) ah~ tão~ perdido~ ligo~ a~ luz~ no~~~ sol
que~vontade~de~~morrer~~pra~nascer~~mais
ligo~o^rompimento~à~~subtração~e~de~~~resto~soçobrar
lavar~~e~~passar~~a~~§erpentina



.r

19.7.09

XI. e XII. Cálculo extraído de fragâncias poéticas - atravessado por ditado mau e mal escrito, sem açúcar

Um livro durou um ano e três meses. - ladrão. Lanchava e lia na sobremesa.
Um filme durou duas horas e meia. - só pega ladrão quem é ladrão. Xingava e cuspia preguiça.

Tradução livre:

Ela ficou furiosa, daquele jeito brando de sempre. Não pegou o ponto. Qual é o ponto?, tilintava em sua cabeça, daquelas belas pernas de aulas. Mas que merda! Podia estar vendo a reprise morninha.

Tradução:

Não gostaram do filme. O filme não pretendia. Metade saiu triste.
.r

14.7.09

X. Prézinho eletroacústico


A LECTURE

Please turn out the lights.

As long as we're going to talk about films, we might as well do
it in the dark.

We have all been here before. By the time we are eighteen years old,
say the statisticians, we have been here five hundred times.

No not in this very room, but in this generic darkness, the only place
left in our culture intended entirely for concentrated exercise of one,
or at most two, of our senses.

We are, shall we say, comfortably seated. We may remove our shoes,
if that will help us to remove our bodies. Failing that, the manage-
ment permits us small oral distractions. The oral distractions con-
cession is in the lobby.

So we are suspended in a null space, bringing with us a certain habit
of the affections. We have come to do work that we enjoy. We have
come to watch this.

The projector is turned on.

So and so many watts of energy, spread over a few square yards of
featureless white screen in the shape of a carefully standardized
rectangle, three units high by four units wide.

The performance is flawless. The performer is a precision machine.
It sits behind us, out of sight usually. Its range of action may be lim-
ited, but within that range it is, like an animal, infallible.

It reads, so to speak, from a score that is both the notation and the
substance of the piece.

It can and does repeat the performance, endlessly, with utter exac-
titude.

Our rectangle of white light is eternal. Only we come and go; we say:
This is where I came in. The rectangle was here before we came, and
it will be here after we have gone.

So it seems that a film is, first, a confined space, at which you and I,
we, a great many people, are staring.

It is only a rectangle of white light. But it is all films. We can never
see more within our rectangle, only less.

A red filter is placed before the lens at the word 'red.'

If we were seeing a film that is red, if it were only a film of the color
red, would we not be seeing more?

No.

A red film would subtract green and blue from the white light of our
rectangle.

So if we do not like this particular film, we should not say: There is
not enough here, I want to see more. We should say: There is too
much here, I want to see less.

The red filter is withdrawn.

Our white rectangle is not 'nothing at all.' In fact it is, in the end, all
we have. That is one of the limits of the art of film.

So if we want to see what we call more, which is actually less, we
must devise ways of subtracting, of removing, one thing and
another, more or less, from our white rectangle.

The rectangle is generated by our performer, the projector, so what-
ever we devise must fit into it.

Then the art of making films consists in devising things to put into
our projector.

The simplest thing to devise, though perhaps not the easiest, is noth-
ing at all, which fits conveniently into the machine.

Such is the film we are now watching. It was devised several years
ago by the Japanese composer Takehisa Kosugi.

Such films offer certain economic advantages to the film-maker.

But aside from that, we must agree that this one is, from an aesthetic
point of view, incomparably superior to a large proportion of all
films that have ever been made.

But we have decided that we want to see less than this.

Very well.

A hand blocks all light from the screen.

We can hold a hand before the lens. This warms the hand while we
deliberate on how much less we want to see.

Not so much less, we decide, that we are deprived of our rectangle, a
shape as familiar and nourishing to us as that of a spoon.

The hand is withdrawn.

Let us say that we desire to modulale the general information with
which the projector bombards our screen. Perhaps this will do.

A pipe cleaner is inserted into the projector's gate.

That's better.

It may not absorb our whole attention for long, but we still have our
rectangle, and we can always leave where we came in.

The pipe cleaner is withdrawn.

Already we have devised four things to put into our projector.

We have made four films.

It seems that a film is anything that may be put into a projecror, that
will modulate the emerging beam of light.

For the sake of variety in our modulations, for the sake of more pre-
cise control of what and how much we remove from our rectangle,
however, we most often use a specially devised material called: film.

Film is a narrow transparent ribbon of any length you please, uni-
formly perforated with small holes along its edges so that it may be
transported handily by sprocket wheels. At one time, it was sensitive
to light.

Now, preserving a faithful record of where that light was, and was
not, it modulates our light beam, subtracts from it, makes a vacancy,
that looks to us like, say, Lana Turner.

Furthermore, that vacancy is doing something: it seems to be mov-
ing.

But if we take our ribbon of film in hand and examine it, we find that
it consists of a long row of small pictures which do not move at all.

We are told that the explanation is simple: All explanations are.

The projector accelerates the small still pictures into movement. The
single pictures, or frames, are invisible to our failing sense of sight,
and nothing that happens on any one of them will strike our eye.

And this is true, so long as all the frames are essentially similar. But if
we punch a hole in only one frame of our film, we will surely see it.

And if we put together many dissimilar frames, we will just as surely
see all of them separately. Or at least we can learn to see them.

We learned long ago to see our rectangle, to hold all of it in focus
simultaneously. If films consist of consecutive frames, we can learn
to see them also.

Sight itself is learned. A newborn baby not only sees poorly - it sees
upside down.

At any rate, in some of our frames we found, as we thought, Lana
Turner. Of course she was but a fleeting shadow - but we had hold
of something. She was what the film was about.

Perhaps we can agree that the film was about her because she ap-
peared offener than anything else.

Certainly a film must be about whatever appears most often in it.

Now, suppose Lana Turner is not always on the screen.

Suppose further that we take an instrument and scratch the ribbon
of film along its whole length.

Then the scratch is more often visible than Miss Turner, and the film
is about the scratch.

Now suppose that we project all films. What are they about, in their
great numbers?

At one time and another, we shall have seen, as we think, very many
things.

But only one thing has always been in the projector.

Film.

That is what we have seen.

Then that is what all films are about.

If we find that hard to accept, we should recall what we once be-
lieved about mathematics.

We believed it was about the number of apples or peaches owned by
George and Harry.

But having accepted that much, we find it easier to understand what
a film-maker does.

He makes films.

Now, we remember that a film is a ribbon of physical material,
wound up in a roll: a row of small unmoving pictures.

He makes the ribbon by joining large or small bits of film together.

It may seem like pitiless and dull work to us, but he enjoys it, this
splicing of small bits of anonymous stuff.

But where is the romance of movie-making? the exotic locations?
the stars?

The film artist is an absolute imperialist over his ribbon of pictures.
But films are made out of footage, not out of the world at large.

Again: Film, we say, is supposed to be a powerful means of com-
munication. We use it to influence the minds and hearts of men.

But the artist in film simply goes on building his ribbon of pictures,
which is at least something he understands a little about.

The pioneer brain surgeon, Harvey Cushing, asked his apprentices:
Why had they taken up medicine?

To help the sick.

But don't you enjoy cutting flesh and bone? he asked them. I can't
teach men who don't enjoy their work.

But if films are made of footage, we must use the camera. What
about the romance of the camera?

And the film artist replies: A camera is a machine for making foot-
age. It provides me with a third eye, an acutely penetrating extension
of my vision.

But it is also operated with my hands, with my body, and keeps them
busy, so that I amputate one faculty in heightening another.

Anyway, I needn't really make my own footage. One of the chief vir-
tues in so doing is that it keeps me out of my own films.

We wonder whether that interferes with his search for self expres-
sion.

If we dared ask, he would probably reply that self expression inter-
ests him very little.

He is more interested in recovering the fundamental conditions and
limits of his art.

After all, he would say, self expression was only a separable issue
for a very brief time in history, in the arts or anywhere else. And that
time is about over.

Now, finally, we must recognize that the man who wrote the text we
are hearing read, has more than a passing acquaintance and sym-
pathy with the film-maker we have been questioning.

For the sake of precision and repeatability, he has substituted a tape
recorder for his personal presence -a mechanical performer as infal-
lible as the projector behind us.

And to exemplify his conviction that nothing in art is as expendable
as the artist himself, he has arranged to have his text recorded by a
different film-maker, whose voice we are hearing now.

Since the speaker is also a film-maker, he is fully equipped to talk
about the only activity the writer is willing to discuss at present.

There is still time for us to watch our rectangle awhile.

Perhaps its sheer presence has as much to tell us as any particular
thing we might find inside it.

We can invent ways of our own to change it.

But this is where we came in.

Please turn on the lights.

New York City, 1968

- Hollis Frampton, "A lecture", em Circles of confusion.

13.7.09

IX. Aforismo-asmático

O que me interessa não é o objeto
mas o subjeto.










.r

10.7.09

VIII. Siso exorcisado

A specter is haunting the cinema: the specter of narrative. If that apparition is an Angel, we must embrace it; and if it is a Devil, then we must cast it out. But we cannot know what it is until we have met it face to face. To that end, then, I offer the pious:

A PENTAGRAM
FOR CONJURING THE

NARRATIVE
I
LATELY, a friend has complained to me that his sleep is troubled by a recurrent nightmare, in which he lives through two entire lifetimes.
In the first, he is born a brilliant and beautiful heiress to an im-
mense fortune. Her loving and eccentric father arranges that his daughter's birth shall be filmed, together with her every conscious moment thereafter, in color and sound. Eventually he leaves in trust a capital sum, the income from which guarantees that the record shall continue, during all her waking hours, for the rest of her life. Her own inheritance is made contingent upon agreement to this invasion of privacy, to which she is, in any case, accustomed from earliest infancy.
As a woman, my friend lives a long, active and passionate life.
She travels the world, and even visits the moon, where, due to a mis- calculation, she gives birth to a normal female baby inside a lunar landing capsule. She marries, amid scores of erotic adventures, no fewer than three men: an Olympic decathlon medalist, a radio- astronomer, and, finally, the cameraman of the crew that follows her everywhere.
At twenty-eight, she is named a Nobel laureate for her pioneering
research on the optical cortex of the mammalian brain; on her forty- sixth birthday, she is awarded a special joint citation by the Con- gress of the United States and the Central Committee of the Peoples' Republic of China, in recognition of her difficult role in mediating a treaty regulating the mineral exploitation of Antarctica. In her sixty- seventh year, she declines, on the advice of her lawyers, a mysterious offer from the decrepit Panchen Lama, whom she once met, as a very young woman, at a dinner given in honor of the Papal Nuncio by the Governor of Tennessee. In short, she so crowds her days with ex- perience of every kind that she never once pauses to view the films of her own expanding past.
In extreme old age - having survived all her own children - she makes a will, leaving her fortune to the first child to be born, follow- ing the instant of her own death, in the same city ... on the single condition that such child shall spend its whole life watching the accumulated films of her own. Shortly, thereafter, she dies, quietly, in her sleep.
In his dream, my friend experiences her death; and then, after a brief intermission, he discovers, to his outraged astonishment, that he is about to be reincarnated as her heir. He emerges from the womb to confront the filmed image of her birth. He receives a thorough but quaintly obsolete education from the films of her school days. As a chubby, asthmatic little boy, he learns (without ever leaving his chair) to dance, sit a horse, and play the viola. During his adolescence, wealthy young men fumble through the confusion of her clothing to caress his own unimagin- able breasts.
By the time he reaches maturity, he is totally sedentary and reclu-
sive, monstrously obese (from subsisting on an exclusive diet of but- tered popcorn), decidedly homosexual by inclination (though mas- turbation is his only activity), hyperopic, pallid. He no longer speaks, except to shout "FOCUS!"
In middle age, his health begins to fail, and with it, imperceptibly,
the memory of his previous life, so that he grows increasingly depend- ent upon the films to know what to do next. Eventually, his entire inheritance goes to keep him barely alive: for decades he receives an incessant trickle of intravenous medication, as the projector behind him turns and turns.
Finally, he has watched the last reel of film. That same night, after
the show, he dies, quietly, in his sleep, unaware that he has com- pleted his task ... whereupon my friend wakens abruptly, to dis- cover himself alive, at home, in his own bed.


- "A pentagram for conjuring the narrative" (em 5 partes), Hollis Frampton em Circles of Confusion.

4.7.09

VII. Aorta

"Vejo-me daqui a dez anos sem você... lendo no jornal que você morreu... com uma sensação de dejá-vu... já perdida... o eco distante de algo que desconheço... sua ausência hoje, que jamais conheci... mas que poderia nomear... como se meu programador tivesse previsto tudo... o que aconteceu e o que poderia ter sido feito. Esse vazio que se tem quando se busca uma palavra que estava na ponta da língua. Eu teria a sua morte na ponta da minha memória."

- Chris Marker explodindo História no meu coração, barricadas de aorta, em Level 5, 1997

16.6.09

VI. Meditação óssea



John Cage

Works for cello
Lecture on nothing
...com fones bem gostosos... dissolvendo os olhos...

6.6.09

V. Coração subterrâneo




Um breve videograma nascido do lapso. Tapa generoso. O que seria esse playground que você wanna talk about? Super-heróis com conta pra pagar. Apreciação mútua.












Mutual appreciation, de Andrew Bujalski (2005)
.r

31.5.09

IV. Apêndice americano

"O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma coisa. A diferença entre a série Chrysler e a série General Motors é no fundo uma distinção ilusória, como já sabe toda criança interessada em modelos de automóveis. As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha. O mesmo se passa com as produções de Warner Brothers e da Metro Goldwyn Mayer. Até mesmo as diferenças entre os modelos mais caros e mais baratos da mesma firma se reduzem cada vez mais: nos automóveis, elas se reduzem ao número de cilindros, capacidade, novidade dos gadgets, nos filmes ao número de estrelas, à exuberância da técnica, do trabalho e do equipamento, e ao emprego de fórmulas psicológicas mais recentes. O critério unitário de valor consiste na dosagem da conspicuous production, do investimento ostensivo. Os valores orçamentários da indústria cultural nada têm a ver com os valores objetivos, com o sentido dos produtos. Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão visa uma síntese do rádio e do cinema, que é retardada enquanto os interessados não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã ─ numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total. A harmonização da palavra, da imagem e da música logra um êxito ainda mais perfeito do que no Tristão, porque os elementos sensíveis ─ que registram sem protestos, todos eles, a superfície da realidade social ─ são em princípio produzidos pelo mesmo processo técnico e exprimem sua unidade como seu verdadeiro conteúdo. Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção, desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o cinema) até o último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido. Gravar sua onipotência no coração dos esbulhados que se tornaram candidatos a jobs como a onipotência de seu senhor, eis aí o que constitui o sentido de todos os filmes, não importa o plot escolhido em cada caso pela direção de produção. "

Theodor W. Adorno após sessão de Iron Man (2008) no cinematógrafo, em Dialética do esclarecimento (1947).

29.5.09

III. Alma tailandesa


essa coisa espaço tempo
fôrma centrípeta
passa passa passapasssa
vem vem vem vemvem
aquele silêncio perguntador
daquilo que recheia o Entre



essa inércia desproporcionada por uma luta selvagem:
vamos e não vamos: matérianãomatéria: enigma circular
um círculo limpo, do tamanho de um copo.




ao ver Syndromes and a century, de Apichatpong Weerasethakul (2006)
.r

16.5.09

aí vem Pedro Costa: Ne change rien

"
Faço música porque gosto muito de ouvir música e porque gosto muito de cantar. Porque quando ouço uma cantora que admiro, tenho logo vontade de fazer a mesma coisa. Jouvet dizia que o ator é o doido que ouve Haïfez tocar na sala Pleyel e que, enquanto o ouve, se imagina perfeitamente no lugar dele. Para esta minha disposição há alguns pontos de apoio, ou melhor, pontos de partida: a ópera, o lied, Marylin Monroe, Blossom Dearie, Kurt Weill e as atrizes-cantoras alemãs, Aretha Franklin, Patti Smith, Blondie, Nico e Mo Tucker.
Gosto muito particularmente da idéia de acorde. Encontrar o acorde, os acordes, acordar-se, nesse antigo sentido de oferecer-se, acordar-se aos outros, e acordar as coisas a nós. Dou-me conta de que a música é a única da artes que pratico que não se sustenta necessariamente sobre a encenação dum antagonismo, ao contrário do teatro ou do cinema que nunca desdenham um combate de morte entre as suas personagens e que exigem constantemente dos seus intérpretes um afrontamento, pequeno ou grande. Na música há o uníssono, a harmonia, e, se possível a síncope (outra forma de acorde, de trégua), parece-me que nela podemos verdadeiramente caminhar lado a lado, de mãos dadas. Nela encontro uma forma de liberdade que, embora nunca deixando de ser um combate, jamais passa pelo confronto. E nela procuro, incessantemente, um abandono. Fazer música, para mim, contém sempre uma maravilhosa promessa de abandono. Talvez como a criança que levada pelo amor, por um olhar, por uma atenção (o ritmo, a melodia, a harmonia) abandona os braços da mãe para caminhar sozinha no vasto mundo, com o espírito livre e o corpo liberto. "Como uma rolha de cortiça num ribeiro", dizia Orson Welles a Jeanne Moreau a propósito de outra coisa. É engraçado, sempre senti que ser atriz, para mim, era um regresso ao tempo do recém-nascido: lavado, vestido, penteado, observado; e o ser atriz de teatro, um regresso ao encantamento das primeiras palavras. Talvez o ser cantora rememore, indefinidamente, a vertigem dos primeiros passos - antes da palavra ou da primeira braçada - já depois da idade da razão.
"

Jeanne Balibar, 26 de abril de 2009