10.12.09

VII. Os rebatedores


O tableaux rebelde

O reflexo no espelho em cima da mesa onde figuras prototípicas conversam talvez seja o ponto de torque em que se baseie Imitation of life. Escondido como um Wally em meio ao tableaux intrigante que compõe a imagem, o caráter autônomo desse reflexo injustificado pela diegese, ao não necessitar de corpo presente para existir (a princípio achamos que é o reflexo da garota ruiva, mas logo percebemos que não o é, havendo confusão de direções), cria um efeito de estranhamento, sutil vertigem, que nos leva a considerar se aquele não seria o nosso próprio reflexo, do espectador detentor do ponto de vista.

Esta tele-visão, olhar à distância, nos desperta para o tubo catódico que veicula tais imagens, as imagens do videoclipe em sua constituição e construção. Para sublinhar tal olhar distanciado vemos através de um zoom que analisa a superfície da imagem denotando, por sua repetição, a tentativa de compreensão do que é visto. A repetição de instantes já "vistos", ou melhor dizendo, já "vividos" nas periferias da imagem instaura de vez o caráter reflexivo de mostração e demonstração de um pensamento em fluxo corroborado pela música. Este efeito produzido explicitamente na edição, portanto sem a espontaneidade do instante, permite que os acontecimentos encenados não se resumam a meros fatos, a meras narrativas, pois o zoom "pinça" potenciais plots que nunca se realizarão para, de fato, apreciá-los criticamente. Nesse ensaísmo a superfície se torna tecido infinito à costura do pensamento.

A obra possui, portanto, uma "moldura" temporal na qual não é permitido avançar linearmente, mas apenas penetrar, cada vez mais, na superfície, no significado da imagem e do som (a música, arte do tempo, é potencializada pela repetição visual que permite determinadas estrofes se realocarem sobre novos contrapontos imagéticos), como se quisesse nos engolir no turbilhão do instante adiado. Porém, não se trata da descontinuidade "progressiva" do espaço-tempo comum aos videoclipes, mas sim do provocante adiamento do contiunuum que o tableaux (todos juntos a uma passada do olhar) e a música (harmônica e contínua) sugerem existir. Percebemos então a rebeldia formal: quando temos o tableaux vivant, assimétrico, nos remetendo à composição barroca, o zoom-pinça-analítica rompe com a “desorganização” nos aproximando de uma “organização” pictórica pontual e "harmônica", individualizante, devedores aos enquadramentos clássicos e, porque não, hollywoodianos.

Nesse sentido, há a crítica subterrânea da totalização e banalização desse código dito clássico. Se fizermos uma comparação da repetição dos instantes do videoclipe através da edição com a montagem paralela de Griffith, podemos intuir uma busca pela Verdade tipicamente ocidental, na qual a própria "decupagem" dos "planos" (já questionável na medida em que o videoclipe trabalha em “zonas”) busca ver "tudo" da "melhor" maneira, de modo a esgotar seu significado, enterrando todas as conclusões formuladas por um espectador ativo. Trabalhando ironicamente esse esgotamento em direção à Verdade absoluta, o vídeo implode e explode a cada verso musical tal totalização: é impossível abarcar o mundo, ainda que repetindo incansavelmente meros 20 segundos de captação. A potência estética de Imitation of life vem dessa articulação referencial que passa da decupagem clássica e totalizante, ao american way of life, que da mesma maneira lapida a sociedade com limites bem delineados: o homem negro não deve tocar a mulher branca.


Podemos afirmar a partir dessa intuição um tratamento estético-político antiespetacular, no qual o ilusionismo das tramas e do discurso é completamente negado. A opacidade discursiva estaria ligada ainda ao desejo da Verdade - perseguida a todo instante pelo olhar pixelante -, mas no sentido de que esta, inefável, estaria sendo perdida e emulada por códigos sociais arcaicos ditados por uma indústria de costumes, de refrões musicais repetidos ao infinito por famílias patéticas.
Os integrantes do REM têm suas presenças de astros minimizadas ao se tornarem meras "personagens", tendo o mesmo valor das restantes, ao mesmo tempo em que, se incluindo nas imagens, denotam a autocrítica dirigida à representação midiática. Há sentido em chamar estes tipos de "personagens", pois há tramas potenciais e a individualização através de características sociais bastante marcadas pelo cinema e imagens figurativas. A maioria dessas personagens canta a música como se a dublassem, causando a sensação de contradição entre a figura de quem enuncia a crítica e a figura de quem representa o foco de tais críticas. Assim a obra planta nos corpos em ação uma espécie de dialética de representação, opaca e transparente, conscientes e inconscientes de seu estado. Nesse sentido a alienação tematizada pela música e pela imagem encontra sua medida justa ao ser formalizada dessa maneira, na qual as próprias personagens enunciam autocríticas sem perceberem. E é nesse paroxismo que o zoom-ciclo vicioso nos surpreende, quando reparamos naquele pequeno detalhe difuso, naquilo que poderíamos chamar de atração eisensteiniana: o espelho refletindo a imagem autônoma. Não seria este o nosso rosto refletido que só saberia repetir o refrão-título? Nós, personagem alienada e participante?

Uma televisão rebelde e abissal é o que Imitation of life nos explode, sutilmente, na cara.


Videoclipe Imitation of life, da banda REM, dirigido por Garth Jennings, 2001, EUA.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ìsso sim é estética ET teoria