30.12.10

Egoísmo estelar

Se, recipiente redondo, eu não rodasse
Em volta de mim mesmo sem parar,
Como aguentaria correr atrás
do Sol ardente sem me queimar?


rima 29, A Gaia Ciência, Friedrich Nietzsche








Gilles Deleuze
: (...) Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes e que todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem, eu não o conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem.

Claire Parnet: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.

Gilles Deleuze: Sim, é Osip. Nesta frase, ele diz... É o tipo de frase que me transtorna. (...) Ele diz que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone por arquivos familiares. Ele continua. "Eu repito: a minha memória não é amor, mas hostilidade. Ela trabalha não para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de origem medíocre, a memória é inútil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está feita. Dentre as gerações felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e crônicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o século, há um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos não a falar, mas a balbuciar. Foi só quando demos ouvidos ao barulho crescente do século e fomos embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem". Para mim, isso quer dizer que... Quer dizer de fato que escrever é mostrar a vida. É testemunhar a favor da vida, dos idiotas que estão morrendo. É gaguejar na língua. Fazer literatura apelando para a infância é tornar a Literatura parte de seu caso particular. É fazer literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se gagueja - o que não é fácil, pois não basta ga-gaguejar assim -, se não se vai até esse ponto. Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. (...)


trecho transcrito do vídeo-entrevista O abecedário de Deleuze, 1994
detidos na letra E de enfance (infância)


28.12.10



Há uma quixotesquia em Alÿs que nos desloca de nossos lugares púdicos, como pode? ou melhor ainda por quê? O que parece ser nada é alguma coisa, e, às vezes - isso é muito belo, o paradoxo da práxis - fazer alguma coisa não leva à nada. O absurdo - ficarmos sem chão - já é uma pista do que podemos elaborar a seguir:
criar um novo apoio - re-sustentar
questionar o teto
aprender o vôo
aprender a queda
(...)

*


A arte como espelho da sociedade (blablabla); isso é muito importante, pois é um pêndulo em tempo real, atual, portanto passante. A questão reside em meus olhos que se vêem desincronizados com o movimento desta imagem, tanto quanto minhas mãos que tentam acompanhá-la em mímica.
Como atualizar o movimento real / aparente? Como polir espelho-olhos-mãos?


*

A liberdade é um mito camaleão
que em breve se colore opressão.

A opressão é um fato camaleão
que nunca se colore diamante. 






26.12.10

anexo:


Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina. Tudo lhes é novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto próprio. O mundo é vasto, e no entanto é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas; distinguem-se eles nitidamente, o mundo e o eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios um ao outro, pois o fogo é a alma de toda luz e de luz veste-se todo fogo. Todo ato da alma torna-se, pois, significativo e integrado nessa dualidade: perfeito no sentido e perfeito para os sentidos; integrado, porque a alma repousa em si durante a ação; integrado, porque seu ato desprende-se dela e, tornado si mesmo, encontra um centro próprio e traça a seu redor uma circunferência fechada. "Filosofia é na verdade nostalgia", diz Novalis, "o impulso de sentir-se em casa em toda parte". Eis por que a filosofia, tanto como forma de vida quanto como a determinante da forma e a doadora de conteúdo de criação literária, é sempre um sintoma da cisão entre interior e exterior, um índice da diferença essencial entre eu e mundo, da incongruência entre alma e ação. Eis porque os tempos afortunados não têm filosofia, ou, o que dá no mesmo, todos os homens desse tempo são filósofos, depositários do objetivo utópico de toda a filosofia. Pois qual a tarefa da verdadeira filosofia senão esboçar esse mapa arquetípico?
Lukács, A teoria do romance


Algo se esboça. É dificultoso sincronizar duas coisas que na verdade não são separáveis. Uma aporia constante. Língua bestial que se apóia no puzzle: separaram o inseparável, resta-nos juntá-loE seguindo de mãos dadas até o fim do bosque, encontramos inscrito no solo aquilo que nos perguntávamos no início da caminhada:


E se alguém dissesse, em sonhos, "estou 
dormindo" -- diríamos que "tem toda a razão"?
L. Wittgenstein, Zettel, 396


25.12.10



os dorminhocos / firmamento


O céu é a imagem do caos. O céu é o container da razão. 
Firmamos um pacto de agora em diante: 
esta teoria nos abandonará no mundo, 
onde desviaremos o que existe 
com o que existe.






24.12.10



Talvez o que me interesse não seja tanto a memória, mas o esquecimento; essa espécie ativa de memória negativa. 
Porque algo se transforma perdendo, liberando espaço. Nascer no repouso.


O paradoxo é o que me faz invendável. 
Porque meu interesse no movimento nasce da minha imobilidade. 
Eu quero esquecer algo de que não me lembro.



23.12.10


como é belo este pássaro que nos acompanha.


News from home, 1977, Chantal Akerman



16.12.10



Falo pelas pessoas habituadas a encontrar sabedoria na folha que cai, problemas gigantescos na fumaça que sobe, teorias nas vibrações da luz, pensamento nos mármores, e o mais horrível dos movimentos na imobilidade. Encontro-me no ponto exato em que a ciência toca a loucura e não posso impor barreiras.

trecho de Théorie de la démarche, 1853, Honoré de Balzac



11.12.10

(...) No sonho o pensamento não se distingue do viver e não perde tempo com ele. 
Adere ao viver; adere inteiramente à simplicidade do viver, à flutuação do ser sob os rostos e as imagens do conhecer.

(...) O sonho nunca realiza esse acabado admirável que a percepção atinge durante a vigília e a claridade.


trecho do texto Estudos e fragmentos sobre o sonho
em Variedades, de Paul Valéry

9.12.10


Leitura selvagem, como um RAW linguístico,
mar fonético que une e desune.
Tornar legível a incompreensão para ser compreendido,
não falar no abstrato, mas mostrá-lo,
girar no paradoxo subjetivo entre o que é gota e o que é absorvido -
vejo, mas sinto -
e isso não te exclui do jogo,
a menos que você não queira jogar.
Desobrigação dos olhos, preguiça do nexo comum (preguiçoso),
(lembrete: a preguiça de preguiçosos demanda grande desvio de energia)
e no fim, mas ainda assim, um saldo.
Saldo. Saúdo. Beast. Langage. Eu. Você.


Film Socialisme, Jean-Luc Godard, 2010



7.12.10


algo é dito sobre o conhecido, mas nada sobre o desconhecido.
eis o limite.

resta, portanto, des-cobrir as imagens corriqueiras (pois elas nos informam sobre nosso estado).

Mais uma vez, como um clarão - 
não suprimir o limite: transfigurá-lo.




4.12.10



(...) Vontade de poder: a forma afetiva primitiva*.
* Tà páthe: "acontecimentos, mudanças que ocorrem nas coisas".

(...) a paixão pela diferença.

fragmentos acerca da figura Cólera em O neutro, de Roland Barthes.

*
Editar um vídeo deve ser estruturar sua erosão,
como o desejo de desaparecer, e, ainda assim,
continuar.
Os dorminhocos é um estado não apenas dos homens,
mas de todo o resto.
Desejo o estado bruto do movimento,
.......................................des-aparecimento
........................................trans-formação
Desejo o tempo necessário de compreensão destes estados.



25.11.10

de Matta-Clark a Smithson, vice-versa



ready-to-be-unmade
absurdo lógico
conscientizar (absorver no corpo)
a possibilidade de desfazer a si mesmo, 
..........................................ao ambiente 
...................................................e assim por diante
não uma nova cognição,....................................
reutilizar a antiga................................................


(no topo) Spiral Jetty, 1970, Robert Smithson

24.11.10



brutidão constante
lembrança bruta do que ainda não foi.

dissolvo meus olhos na terra
e bebo.

20.11.10


Alquimia elementar. 
Portanto, um paradoxo.
A mistura sem mistura.
Terra, ar, água, fogo. 
Tubos de ensaio que são copos de café,
homens atentos
atrás e a frente da câmera
ao aprendizado. 
Apreendem o pássaro, o raio, a voz.
Deus nos modifica,
a Natureza nos modifica.
Mergulho metamorfísico no outro, 
elixir da coisa.
ai, ai

A alma do osso, de Cao Guimarães, 2004


18.11.10



E se alguém dissesse, em sonhos, "estou 
dormindo" -- diríamos que "tem toda a razão"?

L. Wittgenstein, Zettel, 396


13.11.10


o tempo segundo a lógica dos sólidos.
os sólidos dançam no tempo.
mas o tempo não existe.
tarasca guidon nos doces bárbaros.
guia 3.


Head on
Cai Guo-Qiang



9.11.10

Um belo dia descobrimos que é melhor ver-se o menos possível. E chegamos a uma espécie de redução, que não é uma redução, mas uma concentração que, de fato diz mais. Um suspiro passa a ser um romance.

Isso disseram os StraubHuillet. Outra coisa tem se mostrado importante: o mergulho na superfície dos filmes do Apichatpong. Simultaneidade e paradoxo. Não-tempo. A imagem do rio em Sidarta (do Hesse) é exemplar: igual e diferente em todos os pontos. Familiar e estrangeiro. Tudo muda sem nada mudar.


Não só o buda, mas coisas diversas como Shakespeare ou Meryl Streep em The French Lieutenant's Woman dizem aquelas coerências-de-fundo que o mundo possui em algum lugar de nossas cabeças. Se a evolução não é um círculo, mas uma espiral, talvez seja interessante duvidá-la também como uma espiral circular. Um passo atrás, um passo adiante.


8.11.10



repouso num dia de sol, ciso # 2

5.11.10



O tempo não existe. (?)



28.10.10

rompecabezas
Descrever a imagem apenas com palavra, som. 
Rasgar a ausência nos olhos de quem ouve,
para costurar (confrontar) sua imaginação a partir de então,
como o Dissonante da Manon,
neve longínqua em quinhentas peças estranhamente candescentes.

Sentados ao pé do chão,
rosto e imagem se desdobram,
daqui, dali, dacá.

Abrindo os sapos com canivetes,
Consegui não descobrir.

26.10.10

guia dois: rompecabezas

os dorminhocos
Expressão do rosto diante do início sem base. Resta a cor para compor, variação sobre a pintura (possibilidade de desvio pelas mãos), maneira volpesca de reestruturar a matéria. Mas aqui, como no firmamento, há algo de errado, de limitador, de mecânico: fragmento unitário. Tirar as peças que formam as bordas, pelos velhos motivos da incompletude, por um início de desvio.
A face da cabeça-rompida: importância do olhar, mas também das mãos. Flusser e Bergson. Buscar a estruturação visível, para então romper com ela. No reino das necessidades não-formuladas. O cinza irá nesse sentido de ponto de inflexão, a vírgula ótica, o respiro que toma outro rumo, mas ainda incerto.





23.10.10

22.10.10


lembrete, beast language:


A consciência. -- A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado consciente vêm inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que seria necessário, "contrariando o destino", como diz Homero. Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua consciência; ou melhor: sem aquele há muito ela já teria desaparecido! Antes que uma função esteja desenvolvida e madura, constitui um perigo para o organismo: é bom que durante esse tempo ela seja tiranizada! Assim a consciência é tiranizada -- e em boa parte pelo orgulho que se tem dela! Pensam que nela está o âmago do ser humano, o que nele é duradouro, derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! Vêem-na como "unidade do organismo"! -- Essa ridícula superestimação e má-compreensão da consciência tem por corolário a grande vantagem de que assim foi impedido o seu desenvolvimento muito rápido. Por acreditarem já ter a consciência, os homens não se empenharam em adiquiri-la -- e ainda hoje não é diferente! A tarefa de incorporar o saber e torná-lo instintivo é ainda inteiramente nova, apenas começa a despontar para o olho humano, dificilmente perceptível -- uma tarefa vista apenas por aqueles que entenderem que até hoje foram incorporados somente os nossos erros, e que toda a nossa consciência diz respeito a erros!

A Gaia Ciência, aforismo 11, Nietzsche, 1882 / 1887


18.10.10

Um posicionamento que parece muito importante: 
estar sempre disposto a perder algo. 
Não querer agarrar, mas dispersar, desmontar, des-
Risco fundante da simplicidade. 

Não suprimir o limite: transfigurá-lo.
Se toda língua é classificação
e toda classificação é opressão
então é nossa função básica oprimir,
oprimir um nada que sob tal pressão
nos dê diamantes sem valor.


Um quebra-cabeça que cintile
e que nos deixe atentos,
sob firmamento e pacto
de olhos e bocas rebeldes
porque dormem.

Defino o Neutro como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. Pois não defino uma palavra; dou nome a uma coisa: reúno sob um nome, que aqui é Neutro.
Paradigma é o que? É a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido.
(Barthes)

desmanche constante, 
adeus ao futuro,
demanda por nuance,
a nuance demanda
que cada um se espalhe pelos campos, seu campo.


sleeping woman, 1929, Man Ray

14.10.10



lembrete:

















profile and hands, 1932, Man Ray
dead leaf, 1942, Man Ray

A solarização consiste na inversão dos valores tonais de algumas áreas da imagem fotográfica, que pode ser obtido basicamente através da rápida exposição à luz da imagem durante seu processamento.

12.10.10




Gordon Matta-Clark

8.10.10


comunhão, mortalidade, natureza, peregrinação
deus e homens frente à mesma fina camada
rolar-se , banhar-se da terra, perder-se
Jesus dorme na companhia dos visitantes,
sono inteiramente tecido de confiança,
este ato benevolente - conceder o sono a alguém -
está por todos os cantos
quando comicamente se levantam para em seguida sentar,
quando conversam ao pé das árvores,
e fala-se de sonhos absurdos
e envolve-se de natureza em manto e coroa,
enquanto se dorme improdutivamente no intervalo da jornada das jornadas.
riso constante ao reparar no absurdo do mortal que pára pra descansar no caminho ao encontro de deus.

estou sempre dormindo; preciso de tempo para acordar, para entender.


El cant dels ocells, de Albert Serra, 2008

2.10.10

guia um, os dorminhocos

firmamento
atentar ao cinza = ponto de inversão
instrumentos de cordas como tendões inflamados? voz? fôlego?
estado de dispersão, algo a desfazer, algo a perder 
ciência da liberdade






*





(...) No caso de Berkeley, creio ver duas imagens diferentes, e aquela que mais me impressiona não é a que se acha completamente indicada no próprio Berkeley. Parece-me que Berkeley percebe a matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus. Ela permanece transparente enquanto os filósofos não se ocupam dela, e então Deus se mostra através dela. Mas quando os metafísicos a tocam, ou mesmo o senso comum enquanto metafísico, imediatamente a película perde o brilho e se engrossa, torna-se opaca e forma uma tela, pois palavras tais que Substância, Força, Extensão abstrata, etc., aderem a ela, depositam-se como uma camada de poeira, e nos impedem de perceber Deus por transparência. A imagem é ligeiramente indicada pelo próprio Berkeley, embora ele tenha dito "que levantamos a poeira e lamentamo-nos depois de não mais enxergar". (...) trata-se de uma imagem simples que é preciso ter diante dos olhos, pois, se ela não é a intuição geradora da doutrina, deriva imediatamente desta intuição e se lhe aproxima mais do que qualquer das teses tomadas à parte, mesmo mais do que a combinação delas.

fragmento da conferência A intuição filosófica
Henri Bergson, 10 de abril de 1911 
 
*
Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. No entanto, a imaginação tem dois aspectos: se de um lado, permite abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstruir as duas dimensões abstraídas na imagem.

fragmento do capítulo A imagem
em Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser

*
Caro Confrade

Fiquei extremamente desapontado quando soube que não viríeis provavelmente à Europa e meu desgosto teria sido bem mais vivo se não tivesse sabido que é a melhora de vossa saúde que vos impõe renunciar a esta viagem. Desejo que vos restabeleçais pronta e completamente da fadiga de que falastes, e que se explica muito bem quando se pensa na soma de trabalho e reflexão que deve ter custado vosso último trabalho, The Varieties of Religious Experience.

As dificuldades que me assinalastes em certas partes de Matéria e memória são bem reais, e estou longe de tê-las completamente superado. Creio entretanto que, entre estas dificuldades, há as que dizem simplesmente a hábitos inveterados de nosso espírito, hábitos que possuem uma origem inteiramente prática e dos quais devemos nos livrar na especulação. Tal é, por exemplo, a dificuldade de admitir lembranças presentes e inconscientes. Se assimilamos as lembranças a coisas, é claro que não há para elas meio-termo entre presença e ausência: ou são realmente presentes em nosso espírito e, neste sentido, conscientes, ou, se são inconscientes, são ausentes de nosso espírito, e não se deve contá-las entre as realidades psicológicas atuais.

Mas, no mundo das realidades psicológicas, não creio que haja lugar para colocar a alternativa to be or not to be (ser ou não ser) com semelhante rigor. Quanto mais tento apreender-me a mim mesmo pela consciência, tanto mais me apercebo como a totalização ou o Inbegriff (epítome: resumo) de meu passado, este passado estando contraído em vista da ação. "A unidade do eu" de que falam os filósofos me parece como a unidade de uma ponta ou de um cume, nos quais me concentro a mim mesmo por um esforço de atenção, esforço que se prolonga durante a vida inteira e que, ao que parece, é a própria essência da vida. Mas, para passar desta ponta de consciência ou deste cume para a base, isto é, para um estado em que todas as lembranças de todos os momentos do passado estariam espalhadas e distintas, sinto que teria de passar do estado normal de concentração a um estado de dispersão como o de certos sonhos; não haveria, pois, nada de positivo a fazer, mas simplesmente algo a desfazer, nada a ganhar, nada a acrescentar, mas antes algo a perder; é nesse sentido que todas as minhas lembranças lá estão quando não as percebo, e que não se produz nada de realmente novo quando elas reaparecem à consciência.

O resumo que tivestes a bondade de me enviar, relativo ao curso que ministrais neste momento, me interessou profundamente. Contém tantos aspectos novos e originais que não chego ainda a abarcar o conjunto de maneira suficiente, mas uma idéia principal se destaca para mim desde agora: é a necessidade de transcender os conceitos, a lógica simples, enfim, os procedimentos de uma filosofia demasiado sistemática que postula a unidade do todo. É um caminho análogo que trilho, e estou convencido de que, se uma filosofia realmente positiva (isto é, suscetível de progresso indefinido) é possível, ela só pode ser encontrada nesta direção.

Carta de Henri Bergson a William James, de 25 de março de 1903

*
Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia. Tempo diferente do linear (a escrita), o qual estabelece relações causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo, no circular (a imagem), o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis.

fragmento do capítulo A imagem
em Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser

28.9.10



(...) O objeto de nosso primeiro capítulo é mostrar que idealismo e realismo são duas teses igualmente excessivas, que é falso reduzir a matéria à representação que temos dela, falso também fazer da matéria algo que produziria em nós representações mas que seria de uma natureza diferente delas. A matéria, para nós, é um conjunto de "imagens". E por "imagem" entendemos uma certa existência que é mais do que aquilo que o idealista chama uma representação, porém menos do que aquilo que o realista chama uma coisa -- uma existência situada a meio caminho entre a "coisa" e a "representação".

(...) Eis as imagens exteriores, meu corpo, e finalmente as modificações causadas por meu corpo às imagens que o cercam. Percebo bem de que maneira as imagens exteriores influem sobre a imagem que chamo meu corpo: elas lhe transmitem movimento. E vejo também de que maneira este corpo influi sobre as imagens exteriores: ele lhes restitui movimento. Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe.

fragmentos do prefácio e do capítulo 1
(Da seleção das imagens para a representação. O papel do corpo)
em Matéria e memória, de Henri Bergson

26.9.10



firmamento
calcificação=imaginação
estruturação lenta
imagem de fundo=ruído de fundo : o que resta quando nada resta
mantra
natureza em gotas

19.9.10

12.9.10


(...) gozo do "fútil" (lat. fundo - que se derrama, que nada segura). Em suma, delicadeza: a análise (lýo* > desatar) que não serve para nada
* verbo grego que significa também "dissolver, resolver, explicar"

(...) Não "traços", "elementos", "componentes", mas o que brilha por clarões, em desordem, fugazmente, sucessivamente, no discurso "anedótico": tecido de anedotas do livro e da vida

(...) Arte = prática fina da diferença: não tratar os objetos do mesmo modo: tratar o aparentemente mesmo como diferente

(...) discernare

(...) eliminação de toda e qualquer repetição: a delicadeza horroriza-se, melindra-se com repisamentos

(...) a) Walter Benjamin, em Marselha, experimenta H; vai ao restaurante Basso e fica em dúvida diante de vários pratos: "não por gula, mas por expressa polidez para com os pratos, por medo de melindrá-los, recusando-os". b) Isto, que é uma viravolta admirável, por delicadeza = pois delicadeza doutrinal: doutrina Tao sobre a imortalidade do corpo (alma =/= corpo: dicotomia ocidental): é o corpo que deve ser imortal. Imortalidade: conservação do corpo vivo. Ao longo da vida, é preciso ir substituindo o corpo mortal por um corpo imortal, fazendo nascer em si órgãos imortais que substituem os órgãos mortais. No entanto, desmentido imediato dos fatos: evidente que todos morrem. "Para não causar perturbação na sociedade humana em que a morte é um acontecimento normal, quem se tornava imortal fingia ter morrido e era enterrado normalmente: o que se punha na urna funerária era uma espada ou um cajado ao qual ele dera aparência de cadáver; o verdadeiro corpo partira para viver entre os Imortais = "a Libertação do Cadáver". Admirável consideração pelos outros, delicadeza pura: fazer de conta que morreu para não chocar, ferir, embaraçar os que morrem

(...) destacar um traço e fazê-lo proliferar em linguagem (...) a língua cria o real; quem escolhe sua língua escolhe sua realidade

(...) Princípio de delicadeza: interstício absoluto do conformismo e da moda

(...) Esse estado amoroso "afastado" do querer-agarrar pode gerar todo um complexo de valores-sensações que os japoneses (sobretudo no que se refere ao haicai e ao Zen) chamaram de sabi: "simplicidade, naturalidade, não-conformismo, refinamento, liberdade, familiaridade estranhamente mitigada com desinteresse, banalidade cotidiana requintadamente velada de interioridade transcendental"

fragmentos acerca da figura Delicadeza em O neutro, de Roland Barthes.

vaga pendente


6.9.10


A paleta não é uma questão do olhar, mas da pulsão das mãos.
São cores de um espectro interior, extensão do corpo que anima a máquina.
Se passa pelos olhos é porque choramos por ela.
Se passa pelas mãos é porque nela podemos fazer cócegas.
As imagens são precipitados de lágrima e riso,
adormecidas.

4.9.10

guia um: Precipício delicado

os dorminhocos
Escaner. Folha fina. Rastreamento lento. |||||]|||||||
 sobre lançar luz
lançar luz sob
subterraneamente
emergindo as pedras lançadas no rio,
soçobrando o que cair de nossos olhos
que se afogam em olhares
que carregam imagens-âncora
lançadas no precipício de luz
sobre
sob
subluminescente,
escuridão de bordas sonoras