15.8.09

A estética da fome


Um grupo discreto andava, um bloco deslizante de mãos em bolsos e pescoços encurtados. Talvez andassem com certeza demais pra se dizer que não tinham rumo ou bandeira, ainda que isso não importe. Eles se olhavam olhando para frente e para trás, para os lados, para o alto, mas não se olhavam e se viam muito bem, um degelo.

Um deles falava com força em ponto de fusão, prestes a romper com a real realidade e com aquilo que eles vibravam no instante descrito. Como se mergulhasse em um espelho líquido "vamos mergulhar" e por um breve silêncio houve a impressão de "vamos orgulhar", mas ao dobrar a calçada bruscamente rumo ao cinema de calçada - não era mais de rua, pois ali se vendia muito caro apenas àqueles que se queriam como compradores e ainda mais como pagadores - as coisas se esclareceram brandamente sem precisar se perguntar nada. O soquinho no estômago se auto-explicava. Cartaz de improvável sucesso - ao menos enquanto pagadores, pois sabia-se que as sinopses eram meras emersões oceânicas à calçada.

Talvez devessem banir as descrições, realmente, como dizia Glauber em entrevista centrífuga. É pra ver e ouvir, não dá pra contar. Então o que restará depois será apenas o movimento de voltar sem rumo às calçadas, mas com algo imergido no peito como uma tatuagem de marinheiro, um upload. Então uma resenha é de fato um download bastante duvidoso, vagaroso e que no fim não se pode instalar. Mas quem se importa com a utilidade de algo que não prescinde utilidade não faz movimentos bruscos rumo ao cinema ou à algo tão... sem rumo... sem sentido.

Aquele querido mês de agosto é um filme de fronteira. Humana, de alcance, estética, e de língua para os brasileiros. Conta-se uma histórinha que não importa, uma fábula apodrecendo em outros filmes e cinemas, que já foi vista de tantas maneiras em análise combinatória, que se chegou ao ponto de que ficção é constatação pública. Loteria garantida. Usando dessa impossibilidade de contar algo novo nos moldes antigos, o filme mergulha na pré-produção, assumindo-a como pesquisa e processo. Mas não se trata apenas - apenas- de outra metalinguagem deslumbrada com o reflexo, mas da tentativa de encontrar um mapa interior e anterior ao filme em si. E nesse movimento encontramos o que conhecemos (ou não) como - reparando nos itálicos aspáticos- documentário, encenação, registro pesquisativo, road movie, filme de arte, drama, dramalhão artístico, música brega, enfim, em processo.

Portanto, seguimos em direção a filmes infinitos, que não possuem o dom do The end, Fim ou Ende. Aí percebe-se que tudo que tem um fim planejado já possui uma certa contradição ou ironia negativa, pois tendemos menos ao cronômetro do que à eternidade. Não é saudável os namoros de verão terem consciência do inverno, e isso é sintetizado neste filme no momento em que Tânia/Sónia Bandeira chora e ri na despedida do primo amante. É o fim: mas é agosto, é o sol, é a lua, é o ciclo, é o primo, é o amor. Ao mesmo tempo em que essa risada ambígua se apóia na linha divisória do mascaramento da encenação e do instante em que a garota se despe do ridículo latente à toda ficção e jogo. Não que Miguel Gomes, o diretor, tenha planejado esta quebra e posto tudo isso na montagem, mas seu mérito é menos falar e mais ouvir, abrir a estrutura do Cinema - com letra maiúscula, assim como Eduardo Coutinho, Wim Wenders ou Cassavetes, o fizeram cada um à sua maneira e momento - para que se contamine com seu próprio veneno, antecipando a preocupação do feiticeiro contra o próprio feitiço, mas sem evitá-lo, desmascarando-se, como se o que restasse no cinema de hoje fosse a autofagia.

Mas a fome é metafórica - me perdoem pela obviedade -, pois além de não ser um alimento real, o estômago está cheio. Ele pede alimento novo e fresco. A saturação da ficção acadêmica é demonstrada sem infantilidade no filme através do contraste e do limite entre a pesquisa e o que deveras entra para a parte ficcional, ou "o filme de verdade" como se espera ouvir por aí. É bastante curiosa a reação da platéia ao longo do filme, quando documentário e quando ficção esperta. É praticamente uma mudança de lados, de fazer e desfazer amigos, de brigar e trepar com a platéia através do aparato, do gênero e do ritmo. "É muito legal quando o filme começa de verdade", poderia dizer um desatento à crise subterrânea. Mas o importante é que essa volta ao filme "fácil" não é concessão, mas discussão originária desta tensão. Olhe a sobreposição de imagens, quando finalmente se encontram as personagens do filme, através do olhar do binóculo e de uma viagem quase metafísica entre o momento do "eu farei um filme" e "vocês fazem um filme". É a negação da necessidade de fronteiras, de desmistificar o cinema dizendo "não, cinema, você não é especial e deve ser quanto menos especializado, você já não apetece nossos olhos cansados". Como o amor de verão desfeito de Tânia, Aquele querido mês de agosto se despede da Amarra cinematográfica para depois reencontrá-la novamente, esperando dessa vez que esta esteja casada e com filhinhas-amarras lindas.

Pois então como que cuspidos de volta às ruas, o discreto grupo nadava em um espelho líquido, percebendo que podiam novamente se entorpecer. Afogaram-se lembrando dos langoliers de Fenda no tempo, criaturas em forma de almôndegas carnívoras que comiam o espaço-tempo, podendo comer as fronteiras, agora não mais linhas de cal, mas linhas imaginárias.






Aquele querido mês de agosto estreou na sexta, 14 de agosto em São Paulo, apenas na sala 3 do Reserva Cultural, sala de cinema que cospe verniz em homenagem às piscinas escondidas e aos náufragos pagantes.


.r

8.8.09

10 10110111 101 1


amor kernel, illegal share,
paroxismo,
a arte é um upload.