Dentro dêsse mesmo processo de afastamento dos problemas concretos da sociedade se situa o súbito interêsse (já agora esmaecido) de certos círculos intelectuais pela tese da "sociedade unidimensional" de Herbert Marcuse, que oferece argumentos aos que, contrários ao status quo, não compreendem que a transformação qualitativa da sociedade pode exigir longos anos de trabalho e luta obscura. Oscilando entre a ação extremada e o desencanto, essas pessoas são fàcilmente prêsas de teorias como a de Marcuse que, fechando as possibilidades reais de transformação, justificam o abandono da luta ou a exasperação suicida.
Mas essas "vanguardas" trazem em si, embora equivocadamente, a questão do nôvo, e essa é uma questão essencial para os povos subdesenvolvidos e para os artistas dêsses povos. A necessidade de transformação é uma exigência radical para quem vive numa sociedade dominada pela miséria e quando se sabe que essa miséria é produto de estruturas arcaicas. A grosso modo, somos o passado dos países desenvolvidos e êles são o "espelho do nosso futuro". Sua ciência, sua técnica, suas máquinas e mesmo seus hábitos, aparecem-nos como a demonstração objetiva de nosso atraso e de sua superioridade. Por mais que os acusemos e vejamos nessa superioridade o sinal de uma injustiça, não nos iludimos quanto ao fato de que não podemos permanecer como estamos, e estamos "condenados à civilização". Não podemos iludir-nos tampouco tomando as aparências da civilização como civilização, as aparências do desenvolvimento como desenvolvimento, as aparências da cultura como cultura. No entanto somos prêsas fáceis de tais ilusões. Mas por causas complexas. Temos necessidade do nôvo e o nôvo "está feito". O velho é a dominação, sôbre nós, do passado e também do presente, porque o nosso presente é dominado por aquêles mesmos que nos trazem o nôvo. Precisamos da indústria e do know-how, que êles têm, mas com essa indústria e êsse know-how, de que necessitamos para nos libertar, vem a dominação. Assim, o nôvo é, para nós, contraditòriamente, a liberdade e a submissão. Mas isso porque o imperialismo é, ao mesmo tempo, o nôvo e o velho. O nôvo é a ciência, a técnica, as invenções, que são propriedades da humanidade como um todo, mas ainda estão em grande parte nas mãos do imperialismo, que é o velho. Por isso mesmo é que a luta pelo nôvo, no mundo subdesenvolvido, é uma luta antiimperialista. E isso é tanto verdade no campo da economia, como no da arte. A verdadeira vanguarda artística, num país subdesenvolvido, é aquela que, buscando o nôvo, busca a libertação do homem, a partir de sua situação concreta, internacional e nacional. (...)
- Ferreira Gullar
em
Vanguarda e subdesenvolvimento - ensaios sobre a arte
1969
em
Vanguarda e subdesenvolvimento - ensaios sobre a arte
1969
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