2.10.10



(...) No caso de Berkeley, creio ver duas imagens diferentes, e aquela que mais me impressiona não é a que se acha completamente indicada no próprio Berkeley. Parece-me que Berkeley percebe a matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus. Ela permanece transparente enquanto os filósofos não se ocupam dela, e então Deus se mostra através dela. Mas quando os metafísicos a tocam, ou mesmo o senso comum enquanto metafísico, imediatamente a película perde o brilho e se engrossa, torna-se opaca e forma uma tela, pois palavras tais que Substância, Força, Extensão abstrata, etc., aderem a ela, depositam-se como uma camada de poeira, e nos impedem de perceber Deus por transparência. A imagem é ligeiramente indicada pelo próprio Berkeley, embora ele tenha dito "que levantamos a poeira e lamentamo-nos depois de não mais enxergar". (...) trata-se de uma imagem simples que é preciso ter diante dos olhos, pois, se ela não é a intuição geradora da doutrina, deriva imediatamente desta intuição e se lhe aproxima mais do que qualquer das teses tomadas à parte, mesmo mais do que a combinação delas.

fragmento da conferência A intuição filosófica
Henri Bergson, 10 de abril de 1911 
 
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Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. No entanto, a imaginação tem dois aspectos: se de um lado, permite abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstruir as duas dimensões abstraídas na imagem.

fragmento do capítulo A imagem
em Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser

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Caro Confrade

Fiquei extremamente desapontado quando soube que não viríeis provavelmente à Europa e meu desgosto teria sido bem mais vivo se não tivesse sabido que é a melhora de vossa saúde que vos impõe renunciar a esta viagem. Desejo que vos restabeleçais pronta e completamente da fadiga de que falastes, e que se explica muito bem quando se pensa na soma de trabalho e reflexão que deve ter custado vosso último trabalho, The Varieties of Religious Experience.

As dificuldades que me assinalastes em certas partes de Matéria e memória são bem reais, e estou longe de tê-las completamente superado. Creio entretanto que, entre estas dificuldades, há as que dizem simplesmente a hábitos inveterados de nosso espírito, hábitos que possuem uma origem inteiramente prática e dos quais devemos nos livrar na especulação. Tal é, por exemplo, a dificuldade de admitir lembranças presentes e inconscientes. Se assimilamos as lembranças a coisas, é claro que não há para elas meio-termo entre presença e ausência: ou são realmente presentes em nosso espírito e, neste sentido, conscientes, ou, se são inconscientes, são ausentes de nosso espírito, e não se deve contá-las entre as realidades psicológicas atuais.

Mas, no mundo das realidades psicológicas, não creio que haja lugar para colocar a alternativa to be or not to be (ser ou não ser) com semelhante rigor. Quanto mais tento apreender-me a mim mesmo pela consciência, tanto mais me apercebo como a totalização ou o Inbegriff (epítome: resumo) de meu passado, este passado estando contraído em vista da ação. "A unidade do eu" de que falam os filósofos me parece como a unidade de uma ponta ou de um cume, nos quais me concentro a mim mesmo por um esforço de atenção, esforço que se prolonga durante a vida inteira e que, ao que parece, é a própria essência da vida. Mas, para passar desta ponta de consciência ou deste cume para a base, isto é, para um estado em que todas as lembranças de todos os momentos do passado estariam espalhadas e distintas, sinto que teria de passar do estado normal de concentração a um estado de dispersão como o de certos sonhos; não haveria, pois, nada de positivo a fazer, mas simplesmente algo a desfazer, nada a ganhar, nada a acrescentar, mas antes algo a perder; é nesse sentido que todas as minhas lembranças lá estão quando não as percebo, e que não se produz nada de realmente novo quando elas reaparecem à consciência.

O resumo que tivestes a bondade de me enviar, relativo ao curso que ministrais neste momento, me interessou profundamente. Contém tantos aspectos novos e originais que não chego ainda a abarcar o conjunto de maneira suficiente, mas uma idéia principal se destaca para mim desde agora: é a necessidade de transcender os conceitos, a lógica simples, enfim, os procedimentos de uma filosofia demasiado sistemática que postula a unidade do todo. É um caminho análogo que trilho, e estou convencido de que, se uma filosofia realmente positiva (isto é, suscetível de progresso indefinido) é possível, ela só pode ser encontrada nesta direção.

Carta de Henri Bergson a William James, de 25 de março de 1903

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Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia. Tempo diferente do linear (a escrita), o qual estabelece relações causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo, no circular (a imagem), o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis.

fragmento do capítulo A imagem
em Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser

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