26.1.12

Cinemeteorologia
Serge Daney
20 de fevereiro de 1982

Os Straub passam um dia no campo. Na França e depois no Egito, eles captam signos formais: toda revolução é um pé de vento. Mas, novamente, é preciso saber filmar o vento.
Qual é o ponto comum entre John Travolta e Jean-Marie Straub? Ques- tão difícil, concordo. Um dança, o outro não. Um é marxista, o outro não. Um é muito conhecido, o outro menos. Ambos têm seus fãs. Eu, por exemplo.
No entanto, basta ver seus filmes lançados no mesmo dia nas telas parisienses para compreender que uma mesma preocupação os atormen- ta. Uma preocupação? Uma paixão, de preferência. A do som. Faço alusão a Blow Out (dirigido por Brian De Palma) e a Cedo demais, tarde demais (coassinado por Danièle Huillet), dois bons filmes, duas magníficas tri- lhas sonoras.
O cinema são “imagens e sons”, talvez você insista em pensar. E se fosse o contrário? E se fossem sons e imagens? Sons que provocam a ima- ginação do que vemos e a visão do que imaginamos? E se o cinema fosse também a orelha que se apruma—tal a de um cachorro, ereta—quando o olho não se orienta mais? Num terreno descoberto, por exemplo.
Em Blow Out, John Travolta interpreta o papel de um louco dos sound effects que, a partir de um barulho, identifica um crime e seu autor. Em Cedo demais, tarde demais, Straub, Huillet e seu engenheiro de som ha- bitual, o grande Louis Hochet, perdem-se no interior da França antes de começarem a errar ao longo do Nilo e em seu delta, no Egito. A partir dos ruídos, de todos os ruídos, dos mais ínfimos aos mais finos, eles identifi- cam também um crime. O local do crime: a terra; as vítimas: os campone- ses; as testemunhas: as paisagens. Quer dizer, as nuvens, os caminhos, a grama, o vento.
Em junho de 1980, os Straub foram filmar durante quinze dias no interior da França. Eles foram vistos em lugares tão improváveis quan- to Tréogan, Mottreff, Marbeuf ou Harville. Eles foram vistos rondando próximo a grandes cidades: Lyon, Rennes. Sua ideia, aquela que preside a execução desse opus 12 de sua obra (vinte anos de cinema já!), era de filmar tais como são hoje um certo número de lugares citados numa carta enviada por Engels ao futuro desertor Kautsky. Nessa carta (lida em off por Danièle Huillet), Engels descreve, baseado em números, a miséria das áreas rurais às vésperas da Revolução Francesa. Os lugares, sem dúvida, mudaram. Em primeiro lugar, eles estão desertos. O interior da França, diz Straub, tem um “aspecto de ficção científica, de planeta abandona- do”. Talvez as pessoas vivam nele, mas não o habitam mais. Os campos, os caminhos, as cercas, as paredes de árvores, são marcas da atividade humana, mas os atores são os pássaros, alguns carros, os ruídos, o vento.
Em maio de 1981, os Straub estão no Egito e filmam outras paisagens. O guia, dessa vez, não é mais Engels, mas um marxista mais recente, o autor das recentemente famosas La lutte de classes en Égypte. Mahmoud Hussein. Off novamente, a voz de um intelectual árabe narra em francês (mas com sotaque) a resistência camponesa à ocupação inglesa, até a revolução “pequeno-burguesa” de Neguib em 1952. Uma vez mais, os cam- poneses se revoltam cedo demais e chegam tarde demais quando se trata do poder. Essa repetição obsessiva é o “conteúdo” do filme. Tal um mo- tivo musical, ele é apresentado logo no início: “os burgueses aqui foram como sempre muito covardes para defender seus próprios interesses / desde a Bastilha, a plebe tem que fazer todo o trabalho” (Engels).
O filme é, pois, um díptico. Um, a França. Dois, o Egito. Não há ator, nem mesmo personagens, e, sobretudo, não há figurantes. Se há um ator em Cedo demais, tarde demais, é a paisagem. Esse ator tem um texto: a História (as paisagens que resistem, a terra que permanece) da qual ele é o testemunho vivo. Esse ator interpreta com maior ou menor talento: a nuvem que passa, um alvoroço de pássaros, um conjunto de árvores dobradas pelo vento, uma clareira, é disso que é feita a interpretação da paisagem. Essa forma de interpretar é meteorológica. Não vimos algo assim há muito tempo. Desde o cinema mudo, exatamente.
Vendo Cedo demais, tarde demais (sobretudo a primeira parte), lem- brei-me de um outro filme, rodado em Hollywood em 1928 pelo sueco Victor Sjöstrom, O vento. Esse filme magnífico mostrava Lillian Gish en- louquecendo com o barulho do vento. O filme era “mudo”, e isso só lhe conferia mais força. Qualquer um que tenha visto O vento sabe que esse filme é uma alucinação auditiva. Nunca houve “cinema mudo”, aliás, ape- nas um cinema surdo ao tumulto que se produzia no interior do especta- dor, no seu próprio corpo, quando este se tornava a câmera de ecoar as imagens; as do vento, por exemplo.
Foi preciso esperar o cinema sonoro para que o silêncio tivesse uma chance. E, ainda, Bresson é otimista quando escreve “o cinema sonoro inventou o silêncio”; inventou a possibilidade do silêncio, apenas. Guar- demos o exemplo do vento. Não temos grandes lembranças do vento nos filmes dos anos trinta, quarenta, cinquenta. Ou melhor, eram tempestades que faziam ooouuuh! nos filmes de pirata. Mas o vento do norte, aquele entra pelas frestas, as correntes de ar, todos esses ventos tão próximos do silêncio? E o Zéfiro? E a brisa noturna? Não, foi preciso esperar os anos sessenta, as pequenas câmeras com sincronia, os cinemas novos. Foi preciso esperar Straub e Huillet.
Devido ao ponto de refinamento que eles atingiram na prática do som direto, ocorre um fenômeno bem estranho nos seus filmes recentes (como Da nuvem à resistência). Encontramos as alucinações auditivas próprias ao cinema “mudo”. O mesmo fenômeno de certos filmes recentes de alguns “velhos” da Nouvelle Vague: Rouch (Ambara Damba), Rohmer (A mulher do aviador), Rivette (Le Pont du Nord). Como se o som direto devolvesse a falta de som. Como se, de um mundo integralmente sonoro, ressurgisse um corpo de ator vagamente burlesco.
Normal: quando o cinema era “mudo”, estávamos livres para em- prestar-lhe todos os ruídos. Foi quando ele começou a falar, e sobretudo após a invenção da dublagem (1935), que nada mais resistiu ao estouro de diálogos e de música. Os ruídos baixos, imperceptíveis, não tiveram chance alguma. Foi um genocídio.
Recuperamo-nos lentamente. Na América, por uma perversão de efeitos sonoros (ver Travolta), na França pela reeducação do ouvido, esse grande mutilado (ver Straub). Cedo demais, tarde demais é, que eu saiba, um dos raros filmes que, depois do de Sjöstrom, filmou o vento. É preciso vê-lo—e escutá-lo—para acreditar. É como se a câmera e a frágil equipe de filmagem tomassem o vento como uma vela e a paisagem como um mar. A câmera brinca com o vento, segue-o, ultrapassa-o e retrocede, como uma bola de bilboquê. É como se a câmera estivesse presa por uma coleira ou submetida a uma outra máquina, como aquela inventada por Michael Snow no filme siderante que é La Région centrale (em Snow tam- bém o terreno de jogo da câmera é uma espécie de planeta abandonado).
Ver e escutar ao mesmo tempo; mas é impossível, dirá você! Certa- mente, mas, um: os Straub são corações valentes; e, dois: as viagens ao impossível são um tanto formadoras. Com Cedo demais, tarde demais, uma experiência é buscada conosco, em nós: há momentos em que come- çamos vendo (uma grama que o vento arqueia), antes de escutar (o vento responsável por esse arqueamento). Em outros momentos, escutamos primeiro (o vento), depois vemos (a grama). A imagem e o som são sin- crônicos e, no entanto, a cada instante cada um de nós pode experimentar a ordem em que acomoda suas sensações. É, pois, um filme sensacional.
Essa é a primeira parte, o deserto francês. As coisas acontecem de outra forma no Egito superpovoado. Lá, os campos não são mais va- zios, há fellahs que vagam; não se pode mais ir a qualquer lugar, filmar qualquer um de qualquer jeito. O terreno do jogo se torna novamente o território dos outros. Os Straub concedem uma grande importância ao fato de que um cineasta não deveria incomodar aqueles que filma (quem conhece seus filmes sabe que, quanto a isso, eles são intransigentes). É preciso, então, ver a segunda parte de Cedo demais, tarde demais como um jogo estranho, feito de aproximações e recuos, no qual os cineastas, menos meteorologistas do que acupunturistas, buscam o lugar—o único, o bom—de onde sua câmera poderá captar as pessoas sem as incomodar. Dois escolhos, imediatamente: o turismo exotomaníaco e a câmera invi- sível. Tão perto, tão longe. Em uma longa “cena”, a câmera está plantada diante da porta de uma usina e mostra os operários egípcios que passam, entram e saem. Muito perto para que eles não vejam a câmera, muito longe para que eles fiquem tentados em ir em sua direção. Encontrar esse ponto, esse ponto moral, é aí que está toda a arte dos Straub; talvez com a esperança de que, para os “figurantes” filmados dessa forma, a câmera e a frágil equipe escondida bem no meio de um campo ou de um terreno vazio sejam apenas um acidente da paisagem, um simpático espantalho, mais uma miragem trazida pelo vento.
Esses escrúpulos surpreendem. Eles não são correntes. Filmar, sobre- tudo no interior, é em geral devastar tudo, irromper na vida das pessoas, fazer delas uma vinheta de camponês, do regionalismo, do regresso, do ranço, do museu. Porque o cinema pertence à cidade, e ninguém nunca soube ao certo o que seria um “cinema camponês”, ancorado na vivência, no espaço-tempo camponês. É preciso, então, ver os Straub, habitantes das cidades, navegantes em terra firme, perdidos. É preciso vê-los no meio do campo, com o dedo umedecido erguido para pegar o vento e as orelhas esticadas em direção do que ele diz. Então, a sensação mais nua serve de bússola. Todo o resto, o ético e o estético, o fundo e a forma, deriva disso.
Podemos não suportar a experiência. Isso foi verificado. Podemos não suportar mais a própria ideia de experiência. Isso se verifica todos os dias. Podemos definir que filmar apenas o vento é uma operação ridícula. O vento, justamente. Podemos também passar ao largo do cinema quan- do ele se arrisca a sair de si mesmo.

(publicado no catálgo Straub-Huillet)

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