5.6.10

Portal dos afetos

sobre Hotel Monterey, 1972, de Chantal Akerman

"Não escute com seu ouvido, mas com seu espírito; não escute com seu espírito, mas com seu fôlego. Os ouvidos se limitam a escutar; o espírito se limita a representar-se; só o fôlego, que é vazio, pode apropriar-se dos objetos exteriores"
- Henri Matisse

Hotel Monterey é algo como o oposto a La chambre. Oposto como um reflexo, que é aparentemente a mesma coisa, mas projetada do outro lado. Levando em conta que La chambre se passa em um espaço-tempo primordial e absoluto, o lado oposto neste caso é o mundano e histórico. Pois o que vemos agora, mais uma vez com os olhos surdos de Akerman, é a percepção que se afeta e aprende com a passagem do mundo e de suas figuras. A escolha do cenário parece a mais adequada possível, refletindo ao filme anterior, pois em essência um hotel são chambres.

Mas a novidade que surge do conjunto de quartos e hóspedes é que eles trazem em si a passagem, ou seja, o tempo inscrito em seus corpos. Pudemos vislumbrá-la em La chambre, mas no sentido inaugural, o tempo se iniciava sincronicamente ao filme. Neste caso a presenciamos em seu fluxo, navegamos em seu rio sem conhecermos sua nascente. Sabemos que esta existe em algum lugar acima de nós, mas não podemos precisá-la. Tudo o que vemos parece expandir sua existência para o extra-campo, o extra-captado, o extra-filme. Não é mais possível um giro completo que abarque o todo, o mundo dessa vez se mostra mais complexo, faz-se necessária a montagem. No hall, a velhinha nos observa e vice-versa. Ela possui uma história velada em suas rugas, na maneira como nos encara, mas o que nos é oferecido na imagem presente é o momento único de uma relação, do diálogo que flui. O resto é ruído, seu passado e seu futuro (tudo o que não vemos) são um eco silencioso, apontando para o que nos resta: o presente como resquício.

Até mesmo os quartos são passageiros, pois ainda que eles não saiam do lugar como as maçãs de La chambre, a relação com eles é sempre única. A primeira vez que vemos interiormente um dos quartos nos mostra precisamente isso: a cama no centro do quarto é deslocada para a parede no intervalo de tempo da estadia do hóspede, ou seja, quarto e hóspede estão em um movimento que se define pela diferença de relações. A cama encostada no canto deve lembrar a cama de casa, algo que o serviço de quarto seriado jamais compreenderá. O afeto estabelece a organização dos espaços, e o (nosso) olhar gradualmente o absorve, acumulando-o, encontrando nele combustível para ultrapassar o serialismo neutro, para finalmente variar.

O olhar poroso que absorve os movimentos do arredor possui uma curiosidade graciosa, que observa tudo com sutis movimentos da câmera, como se o que saísse gradualmente de quadro fosse uma grande perda a seus olhos virgens. Como se o filme fosse o olhar de uma criança tranquila, que se depara com um mundo impressionante, que vaza por entre seus dedos e olhos. Como se ecoasse entre aquelas portas e esquinas o grito mudo: Quantas possibilidades!, entre desânimo e entusiasmo.

Começamos a vislumbrar esse eco quando subimos no elevador (o que já denota ação). Observamos na escuridão claustrofóbica a entrada e saída dos passageiros que nos olham curiosos, o que é isso? O olhar afastado e tímido dá, então, um passo a frente (mas que ousadia!), como que contaminado pela curiosidade das outras pessoas. De onde elas vêm? Próximos à porta, espiando pela janelinha, já não somos mais aquela mosca na parede, agora até mesmo atrapalhamos o fluxo dos passageiros, como uma criança travessa que aperta com deleite os botões dos andares. Entrevemos alguns corredores, percebemos que há um vasto mundo acima e abaixo de nós. O estudo topográfico se contamina com a pulsão do agir, de acordo com as ações-emoções que começam a aflorar durante a viagem. O passo a frente no elevador dá a pista de um corpo que começa a se formar, se misturando à inteligência que até então apenas observava.

Este jogo padronizado entre pudor e aproximação ganha a variável da ascensão que o elevador permite. Mobilidade. Podemos considerá-la tanto como portal para a apreensão espacial do hotel, como também portal de ascensão dos afetos, aquele que abre portas para novas relações. Trata-se de uma mobilidade que denota aprendizado baseado na temporalidade histórica: ao afundar o olhar primordial de La chambre nos corredores complexos de narrativas intermitentes do Hotel Monterey, o filme trata da formação e educação de um corpo que no princípio se crê neutro. Espia-se uma hóspede grávida em um dos quartos, uma gestação está em processo.

Os cortes da montagem são baseados neste aprendizado em ascensão. A cada corte (intervalos que não vimos no filme anterior devido ao plano único) percebe-se uma familiarização cada vez maior com os espaços. Passeamos pelo hall do hotel, subimos no elevador, atrapalhamos a entrada, entramos nos quartos, nos detemos nos corredores... O tateamento experimental do mundo desemboca em auto-conhecimento. O olhar poroso permite a acumulação deste conhecimento emanado pela matéria e, com isso, consegue formar um corpo cada vez mais complexo.

No último andar de nossa ascensão acontece a última materialização do corpo que se sedimenta. Os afetos germinam frutos. A criança que apenas olhava silenciosa agora pode andar! O mundo sob seus pés é tempo afetivo se concretizando em espaço. E nesse passo gigantesco na constituição do sujeito nasce também o perigo: morrer é uma questão. Nesse momento podemos compreender bem a imagem do anjo da História de Walter Benjamin que é arremesado pela tempestade do progresso em direção ao futuro, enquanto que diante dos seus olhos o passado se amontoa em ruínas até o céu. Os planos longuíssimos nos corredores do hotel, agora em retrospectiva, denotam uma ruína em processo, um clima decadente. A sensação de morte sentida no último andar, ressignifica todas as imagens que vimos até então, pois nos mostra a situação em que aquelas figuras históricas e passageiras se encontravam. A morte em processo, seja nas rugas ou nos corredores vazios. Então a consciência e o corpo dos quais acompanhamos o nascimento, se vê rodeada por ruínas e compreende que também é parte delas. Por isso caminhamos cautelosos em direção ao exit. A janela. A saída. O êxito. Não é tão fácil se jogar neste mundo fraturado pelo tempo. Após algumas tentativas, finalmente em uma manhã tomamos o impulso para nos lançarmos janela afora.

O corte mais uma vez denota passagem e aprendizado. Está decidido, estamos fora, respiramos o ar frio. O olhar percorre as novas imagens com atenção e deslumbre. Nova descoberta sublime: o mundo é maior do que se pensava. Agora que sabe andar, nada parece impossível, a matéria é sua ferramenta. A criança olha para o céu. Mas o céu que parece ser o final do filme, imprimindo a ideia de dissolução no cosmos, na verdade é o espaço para a constituição de um pássaro. Se foi possível andar, é possível voar. Retornamos o olhar à terra. Voamos. O mundo parece regido por leis completamente assimiláveis a esta percepção que de início nem tinha pernas. Ascendemos. Flutuamos sobre o mundo, sobre o portal dos afetos.

Ao seu término, Hotel Monterey nos mostra graciosamente a educação sentimental de uma percepção que se crê neutra, transformando-se em um corpo-perceptivo que absorve da matéria a consciência de si, com isso podendo se relacionar afetivamente com o resto de um mundo em ruínas, sem esquecer que delas retirou sua hóspede sabedoria.

para baixar:
http://up.tl/info/e3462013d8/Hotel.Monterey.1972.DVDRip.XviD-AEN.html

Nenhum comentário: