30.12.10







Gilles Deleuze
: (...) Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes e que todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem, eu não o conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem.

Claire Parnet: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.

Gilles Deleuze: Sim, é Osip. Nesta frase, ele diz... É o tipo de frase que me transtorna. (...) Ele diz que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone por arquivos familiares. Ele continua. "Eu repito: a minha memória não é amor, mas hostilidade. Ela trabalha não para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de origem medíocre, a memória é inútil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está feita. Dentre as gerações felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e crônicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o século, há um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos não a falar, mas a balbuciar. Foi só quando demos ouvidos ao barulho crescente do século e fomos embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem". Para mim, isso quer dizer que... Quer dizer de fato que escrever é mostrar a vida. É testemunhar a favor da vida, dos idiotas que estão morrendo. É gaguejar na língua. Fazer literatura apelando para a infância é tornar a Literatura parte de seu caso particular. É fazer literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se gagueja - o que não é fácil, pois não basta ga-gaguejar assim -, se não se vai até esse ponto. Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. (...)


trecho transcrito do vídeo-entrevista O abecedário de Deleuze, 1994
detidos na letra E de enfance (infância)


Nenhum comentário: